
Caetano Veloso é um dos mais importantes e produtivos artistas brasileiros em atividade. Cantor, compositor, violonista, poeta e cineasta, foi um dos arquitetos do Tropicalismo, movimento cultural capitaneado por artistas baianos, que mesclou vanguardas do século XX, cultura pop do Brasil e do mundo e política, revigorando a música popular e as manifestações artísticas brasileiras em geral. Entre discos solo, colaborações, parcerias e música para teatro e cinema, Caetano gravou quarenta e dois álbuns, sendo Zii e Zie o quadragésimo terceiro. (B.O.)
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A julgar pelas críticas que li a respeito de Zii e Zie, suponho que escrever sobre um novo disco de Caetano Veloso deva ser sempre uma tarefa mais que complicada. Primeiro, em virtude da sensibilidade exagerada que o objeto evoca, pois, para o bem e para o mal, ela prejudica consideravelmente a perspectiva crítica. Quem ama não sabe bem porque ama, e se derrama em elogios nem sempre proporcionais à obra – como as comparações a Los Hermanos. Quem odeia, idem, embora geralmente construa argumentos menos convincentes e deixe transparecer aquela implicância que a verve irônica e falastrona de Caetano cultivou desde que ele se tornou uma figura pública. Resultado: o sumo e o sentido da obra se perdem e a proposta é pulverizada pelo olhar ideológico e apaixonado.
Outro “empecilho” é o fato de que um dos mais perspicazes críticos de Caetano, talvez o melhor, seja ele próprio. Através de entrevistas e, mais recentemente, do blog Obra em progresso, Caetano insinua uma indefectível habilidade analítica, criando elos entre sua produção e reflexões sobre a cultura, a política e as artes, à moda de um artista como Godard, por exemplo. No caso de Zii e Zie, cuja construção esteve atrelada ao blog, esta característica se intensificou na medida em que ele, com o auxílio de Hermano Vianna, construiu o conceito do álbum “às claras”, compartilhado o work in progress com fãs, amigos e parceiros. Aí eu pergunto: o que escrever depois que Caetano, como quem cria um jogo para desconstruí-lo frente aos jogadores, afirma que “Incompatibilidade de gênios” é uma influência para a sonoridade do álbum, pois sendo um samba “lacônico”, seco, “reduzido ao mínimo” com sua levada marcada e letra cruel, fornece ao grupo parâmetros para a construção musical e conceitual do álbum? Afinal, de fato os “transambas” que compõem o disco manifestam um despojamento certeiro, seco mas, ao mesmo tempo, minucioso. A sonoridade, como ele mesmo afirma, mantém-se numa freqüência rítmica calcada nas referências que balizam este álbum e o anterior, Cê, quando os Pixies foram evocados pelos mesmos motivos. Para onde correr, após comentários tão determinantes e objetivamente críticos em relação a Zii e Zie?
Creio que afastando todo o afã midiático e toda perspectiva ideológica podemos acessar algo além. Assim, me aterei aqui ao resultado efetivo do álbum, elencando os elementos que fazem de Zii e Zie um belo disco, ainda que o melhor disco recente de Caetano continue a ser Noites do Norte. E aí, passo à primeira observação, pois reputo este álbum, particularmente na canção “Rock’n’Raul”, como uma guinada em seu modo de compor, bem como em relação a um registro sonoro mais seco, que dá o tom de Cê e de Zii e Zie. Caetano busca uma sonoridade árida porque suas canções se tornaram mais áridas. Os hai kais da fase final de Leminski, em “Distraídos venceremos” e “La vie en close”, que foram preconceituosamente encarados como concessão, podem dar um parâmetro para esta “aridez” a que me refiro: trata-se do “less is more” de van der Rohe, fato que na biografia artística de Caetano pode ser encarado como uma reorientação radical, de uma espécie de barroco-pop para um rock minimalista e “bronzeado”, por assim dizer. É claro que a alegria solar de “A cor amarela” pode até evocar “Neide Candolina” em Circuladô, ou mesmo “Musa híbrida” em Cê, mas daí é preciso lembrar que se há uma guinada, ela se realiza em um contexto já bastante específico, o que implica em eventuais recorrências e recontextualizações. De um modo geral, suas canções mais recentes tem revelado uma forma mais ligada ao rock no sentido do refrão forte e da estrofe com frases mais curtas (“Base de Guantánamo”, “Menina da Ria”). Em relação à temática, não há mudanças radicais, mas nota-se em Zii e Zie um interesse especial tanto no Rio de Janeiro (“Lapa”, “Falso Leblon”), particularmente em seus problemas raciais-culturais, temática que já estava de alguma forma situada em “O herói” e que, segundo o próprio Caetano, habita o título. Percebe-se também uma vontade irrefreável de falar sobre, descrever, insinuar idéias e impressões a respeito das relações sexuais, como em “Sem Cais” e “Tarado ni você”. Sem contar uma ironia e, falando mais claramente, um humor, por vezes jocoso, por vezes terrível, como no verso “Ecstasy, bala, balada / E me chama depois / Pra dar uma e dar dois”. A propósito, não conheço poeta contemporâneo que se aproprie do léxico coloquial de forma tão interessante quanto Caetano, como no exemplo acima, mas também em “Perdeu”, a obra-prima de Zii e Zie, a faixa mais comovente e impactante que Caetano compôs desde “O estrangeiro”.
O lirismo latente nos arranjos de Jacques Morelembaum se adequava perfeitamente às composições de Circuladô, Livro e às reinterpretações de Fina Estampa e A foreign sound, mas em Noites do Norte percebia-se um flagrante descompasso. As referências concretas de “Zera reza”, o minimalismo de “Cobra coral” e o tema da já citada “Rock’n’Raul” pediam uma mudança de orientação instrumental, que foi dada por Caetano e por Pedro Sá, guitarrista que surgiu no início da década de noventa com a banda Mulheres q dizem sim, e que tocava como uma combinação dos estilos de Lanny Gordin e John Frusciante. Para a Banda Cê, Pedro Sá convidou Marcelo Callado, do lendário (e intrigante) grupo carioca Carne de segunda e Ricardo Dias Gomes, ex-tecladista do não menos lendário Zumbi do Mato. O resultado produzido em Cê e, mais particularmente, em Zii e Zie casa perfeitamente com a estética punk das canções recentes de Caetano. Ressalto a beleza estranha e sinuosa dos ritmos de Callado, sobretudo nas versões “transamba” de “Incompatibilidade de gênios” e “Ingenuidade” (do grande compositor da Mocidade Independente, Serafim Adriano), ambas tiradas do álbum Clementina de Jesus, de 1976, com participação de Carlos Cachaça. E, claro, Pedro Sá, um guitarrista por vezes frio, tamanha a consciência manifesta em sua intervenções e levadas. Pedro Sá não é simplesmente um guitarrista de notas e acordes, mas um compositor de climas que, por acaso, se utiliza da guitarra como instrumento. Destaco o solo de “Incompatibilidade de gênios” e o fascinante arranjo de guitarras para “Perdeu”.
Se os roqueiros identificarão o rock, ou os sambistas o samba; se os saudosistas reclamarão um Caetano mais atrelado aos anos setentas ou mesmo a um repertório mais “nacional”, devido à presença massiva da guitarra; se torcerão o bico por opiniões e eventuais posições políticas do autor; se detalhes externos à obra determinarem o modo como algumas pessoas fruírão o disco… Tudo isso é tão previsível como inevitável. Eu, por mim, só posso dizer que não há aqui nem um disco de rock, nem um disco de samba, muito menos de um artista decadente em busca de revitalização a qualquer custo. Muito pelo contrário. Pode-se até não admirar o trabalho de Caetano, mas não se pode dizer de modo algum que ele é um artista entregue à auto-complacência, pois o que se ouve em Zii e Zie é a intrigante continuidade de uma carreira, de um modo de compor e, portanto, de refletir sobre a canção popular, um trabalho em andamento, vivo, intenso, mas paradoxalmente leve, extremamente leve… A maior testemunha desta leveza talvez esteja concentrada no momentos mais dramáticos do álbum: na lírica melancolia de “Perdeu” e no ateísmo sorridente de “Direrentemente”, onde eventuais polêmicas são diluídas por uma poética do movimento, justamente o elemento mais representativo da obra de Caetano, para além de todo o hype e toda baboseira em torno de sua figura. (Bernardo Oliveira)