Archive

GP/NY

Mais uma colaboração antiga do Gustavo Prado que coloco agora no ar apesar da exposição do Nick Cave não estar mais em cartaz na galeria Mary Boone (10/9 a 22/10 de 2011…). Para ver todas as colunas do Gustavo basta clicar GP/NY na aba das categorias aí ao lado.

Nick Cave na Mary Boone Gallery

Seres repletos

A entrada da galeria Mary Boone no Chelsea é bastante discreta, não há nenhum logo extravagante na fachada, apenas uma porta misteriosa que dá para uma pequena recepção, no fundo da qual, como sempre, uma bela moça, sentada de trás de uma grande mesa com cabelo bem cortado, sorri e espia. No canto mais distante da entrada há uma passagem. Olhando por sua abertura, para a luz que por ela escapa, não há nada que possa te preparar para o que está adiante.

Do outro lado, seres coloridos aguardam, estacionados no centro de uma grande sala. Sua presença e o choque causado pelos objetos e materiais que forjam sua forma e sua pele deixam uma forte impressão, mesmo naqueles já acostumados a todo tipo de estátuas, roupas, corpos, e estranhos tipos de ornamentos que uma cidade tão diversa e pluralista quanto Nova York pode apresentar.

Olhando para sua superfície, pode-se notar que estes corpos são construídos com o acúmulo de estranhos objets trouvé, como pássaros entalhados, corujas de porcelana, bichos de pelúcia, palhaços de brinquedo – com suas cambalhotas mecânicas, bonecas vodoo, globos escolares, peões de corda, tapeçarias mexicanas, tapetes de banheiros com super-heróis e personagens de desenho animado estampados, cata-ventos, cornetas e pirulitos, bandeirolas, sombreiros, macacos de plástico, bules e xícaras, rodas de carroça e lantejoulas, botões, purpurina, flores artificiais etc. E uma explosão de detalhes e cores que formam uma estranha procissão, um desfile fantasmagórico e fantástico paralisado à espera dos nossos olhos; uma junção obsessiva do infantil com o ritualístico, capaz de causar vertigem e assombro.

Sua identidade parece ser dada pelo sentido ou memória do uso passado de todos esses objetos e pelas milhares de associações disparadas com a sua justaposição. Para além de uma apreciação do seu valor escultórico intrínseco, fica a impressão de que eles transmitem uma crítica subliminar. Afinal, quem mais gostaria de ser definido pelos aparelhos e roupas que carrega? Seu exagero parece criar uma caricatura, como uma carapuça que serve.

Outro aspecto desses trabalhos pode ser mais facilmente notado ao tomarmos conhecimento das relações do artista com a dança, ou se tivermos a sorte de testemunhar um dos momentos em que passam de esculturas a figurinos, para tomar parte numa de suas performances. Cave escreveu coreografias específicas para explorar como alguns deles, cobertos com pelos coloridos, criam efeitos impressionantes ao moverem-se, ou para que produzam sons com seu chacoalhar. Eis a razão para que os trajes/esculturas recebam o nome de “Soundsuit”.

Algumas das figuras mais interessantes desta exposição são feitas de centenas de peças de madeira, reunidas para criar uma topografia rústica e orgânica, como uma armadura natural. Elas têm, no lugar de seus rostos, grandes cestos, criando aberturas que parecem reforçar a impressão de que se tratam de criaturas sem alma. Elas trazem a estranha sensação de que o mundo e nós, quando dela nos aproximamos, podemos ser tragados e despencar para dentro do seu vazio. Elas nos lembram também o exército chinês de terracota, como se estivessem à espera de alguma coisa que fosse reanimá-los e trazê-los de volta à vida.

Ao sairmos da exposição, ganhamos a rua com a sensação de que vimos contradita uma das ideias mais antigas da metafísica, ideia essa desenvolvida por Aristóteles, que anuncia que todo ser tem uma essência responsável por realizar o que fundamentalmente é, e que deve retê-la por necessidade, pois, sem ela, perderia sua identidade. A essa essência ele opõe a noção de acidente, ou as propriedades contingentes de um dado objeto sem as quais ele ainda poderia manter sua identidade. A natureza ambígua das esculturas/trajes, seres/personagens que deixamos pra trás na galeria não parece respeitar essa distinção, pois sua identidade é determinada pelos acidentes que sobre ela se acumulam para constituí-la. Elas se apresentam, enfim, como a intrincada narrativa da sua formação.

Aristóteles que nos perdoe, mas com Cave ficamos muito mais próximos das ideias do poeta francês Paul Valéry, que nos disse para não buscarmos muito além, pois o que há de mais profundo é a pele. É dela que extraímos aqui a experiência destas obras, que refletem muito bem a nós mesmos e a nossa época com a riqueza e a complexidade de sua superficialidade.

aqui o site da galeria com o press release da exposição: http://maryboonegallery.com/exhibitions/2011-2012/Nick-Cave/index.html

Nick Cave na Mary Boone Gallery2 Nick Cave na Mary Boone Gallery3 Nick Cave na Mary Boone Gallery4 Nick Cave na Mary Boone Gallery5

Gustavo Prado começou a colaborar com o b®og quando eu estava fazendo a mudança do Blogspot para WordPress. A mudança demorou 6 meses e o b®og ficou fora de ação. Nesse periodo ele me mandou um monte de posts que não foram ao ar. Agora resolvi subir tudo ao mesmo tempo apesar das exposições comentadas não estarem mais em cartaz. Uma pena termos perdido o calor da hora mas espero que vocês apreciem os textos do nosso correspondente no Brooklyn. Segue o texto sobre a exposição de Cindy Sherman no MoMA. Já já coloco mais e mais. Para ver todas as colunas do Gustavo basta clicar GP/NY na aba das categorias aí ao lado.

image1

A retrospectiva de Cindy Sherman no MoMA

Poucos são os artistas de quem podemos dizer que transformaram ou influenciaram de forma tão decisiva o debate sobre arte contemporânea quanto Cindy Sherman. Ela é ao mesmo tempo causa e efeito da preponderância de Nova York sobre o mundo da arte. Se a relação entre Eduard Manet e Paris constitui uma das principais razões para o nascimento da modernidade, talvez um dia também seja possível compreender como a pós-modernidade tem tanto Nova York quanto Cindy Sherman como grandes simbolos. Seu trabalho é herdeiro direto de alguns dos temas que foram formulados nos anos setenta, mas que devem sua internacionalização e predominância à geração de Sherman. São alguns dos mais notáveis: a apropriação, utilizada em seu trabalho como uma lente de aumento capaz de observar nossa Cultura e os papéis que nela foram “deixados” para as mulheres; o uso do corpo como importante suporte para arte no questionamento de estereótipos e fronteiras entre diferentes meios; o privilégio do conteúdo sobre o meio; o engrandecimento do papel do artista, que se torna tanto sujeito quanto objeto, num esforço muito mais complexo que o mero autorretrato; a exploração e teste da ideia de uma identidade unívoca e coerente, o interesse pela fotografia, a submissão de sua linguagem ao uso como ferramenta e registro de uma performance; e a história da arte como um campo a ser continuamente reinterpretado e re-significado por obras que fazem menção ao cânone. Com tantos temas decisivos relacionados à sua obra, ela é parte de uma grande virada histórica. Enquanto na década de oitenta o neo-expressionismo tornava homens-pintores famosos e ricos, trabalhos muito mais significativos criaram o que foi provavelmente um dos mais importantes momentos para mulheres na história da arte: quando artistas como Diane Arbus, Adrian Piper e Hanna Wilke passaram o bastão para Sherman e suas contemporâneas como Sherrie Levine, Barbara Kruger, Nan Goldin, Jenny Holzer, Kiki Smith, entre outras, que ao extrapolar a então chamada “arte feminista,” colocaram a nova geração de mulheres artistas na posição de grandes protagonistas da produção contemporânea.

image2

Untitled Film Still #27. 1979

Mas, mais do que celebrar a importância de Cindy Sherman, e especialmente a de sua obra, já laureada com textos de alguns dos mais importantes críticos, como Arthur Danto e Rosalind Krauss, devemos assumir o desafio de acrescentar ainda mais. Pois nunca há uma interpretação definitiva, sobretudo para trabalhos apontados como capazes de se tornar clássicos definidores de uma época, como sua emblemática série “Untitled Films Stills”. A própria definição de clássico pressupõe uma contínua atualização e revisão da atualidade e permanência da relevância de uma obra, e não é sem ironia que logo uma era que se diz pós-histórica produza seus clássicos, logo uma época que tem no elogio ao efêmero um de seus traços mais significativos. Porém, o mais estranho, é que a interpretação que tivemos ao nos defrontarmos com o conjunto de trabalhos dispostos em formatos cada vez maiores, até que no final se tornem murais, é de que o conjunto dessa retrospectiva montada no MoMA é como uma peça. Ou seja, que é possível traçar uma analogia entre o percurso do espectador pelas salas da exposição com o que vive a plateia de um teatro, mais precisamente, uma analogia entre o que a tragédia quer ser para seu público. Pois, mais do que mera comparação entre a performance da artista diante da câmera fotográfica e o trabalho do ator, nos cabe buscar ir mais longe e sugerir que o papel ocupado por Cindy Sherman em grande parte de suas personagens é o do herói trágico. E, ao apontar para esse traço fundamental de sua obra, não podemos evitar o uso dos termos e ideias de Aristóteles descritos em sua Poética, um livro crucial para o nascimento do pensamento crítico sobre arte. Mesmo que isso soe um tanto estranho e anacrônico, a referência a um texto tão associado a antigos academicismos e dogmas artísticos nos deve ser permitido. Pois, numa era pós-histórica, na qual artistas como Sherman conquistam a liberdade de acessar o passado e recorrer a obras e ideias tão antigas para, transformando-as, também alterar os arcaísmos que cercam os papéis femininos, por que a Poética não poderia vir ao nosso auxílio e lançar luz sobre obras contemporâneas? Por que nos abster de ampliar a compreensão de ambos, obras e texto, nesta confluência ou colisão?

image3 Untitled Film Still #12. 1978

Vejamos. Para Aristóteles, a sorte do herói trágico deve mudar da alegria à miséria, e a razão da queda do herói não vem apenas do destino, mas parte dela deve ser culpa sua, fruto de sua liberdade de escolha, consequência de um erro de julgamento ou falha de caráter. Tudo deve resultar de sua imperfeição, traço muito importante, pois é justamente o que permite que nos identifiquemos com o herói. Se ele fosse perfeito e todo-poderoso, não nos veríamos sujeitos aos mesmos erros e acontecimentos que recaem sobre ele, sua jornada seria distante demais e a identificação muito mais difícil. E sem identificação não haveria catarse. Sua queda deve servir para tornar a nós todos, o público, mais conscientes e atentos às escolhas que temos sempre pela frente. O alerta só se torna memorável, e, a experiência, catártica, se a tragédia imitar ações que despertem medo e piedade, para que por fim possamos nos purificar de tais emoções. Mas de que nos serve, hoje, essa purificação? E como uma obra de arte contemporânea poderia operá-la? Cindy Sherman, desde o início, se refere aos seus personagens como has-beens, mulheres decaídas, no desespero do momento em que tomam consciência do seu desfortúnio. Uma de suas primeiras personagens da “United Series” tem uma mala aberta sobre a cama, que parou de preencher com roupas amassadas para chorar compulsivamente. Outra foto mostra uma moça de pé na estrada vazia a noite, à espera de uma carona. Em mais uma, outra mulher olha fixamente para o telefone, numa imagem de um imenso arcaísmo – mais uma espera, num rosto que é misto de vazio, dor e ansiedade. Elas todas parecem tão sozinhas e sofrendo tanto, que não podemos evitar a pergunta sobre quais escolhas ou circunstâncias as levaram a esse estado. E mesmo que não a julguemos, é difícil não sentir ao mesmo tempo pena e empatia, ou medo de que sua miséria algum dia possa ser a nossa.

image4

Untitled #90. 1981

Em outra série, “Sex Pictures” – agora dos anos 90 –, a aparência é tão artificialmente encenada, com o uso de prostéticos e bonecas médicas, que a nudez, ao invés de excitar, causa repugnância. Como se nosso próprio impulso de projetar luxúria e desejo se voltasse contra nós. Como se a substituição de corpos de verdade por objetos tão esquemáticos nos mostrasse nosso desprezo pela mulher real, que precisa ser esquecida para ser utilizada como mero canal e suporte para uma experência erótica. Mais do que o canônico embate entre o nu e a nudez, a imagem da artista precisa, nesses trabalhos, desaparecer, num esforço para colocar o nosso olhar e o papel de uma audiência ávida por imagens femininas no centro do palco. O grotesco dos órgãos sexuais, e dos olhos ora reais, oras falsos, que de dentro das máscaras nos veem, nos lembram que nós também podemos nos tornar objetificados. Eles também parecem desinteressados da nossa humanidade, e nos percorrem em busca de órgãos e membros tanto quanto os nossos olhos há pouco faziam.

image6 Untitled #264. 1992

Na sala seguinte, um alivio momentâneo, pois em “Fashion Series”, ou “Society Portraits,” a objetificação do corpo é algo a ser medido, refinado, pelas próprias personagens, mulheres que, na busca pela beleza e atenção dela proveniente, parecem explorar os limites da vulgaridade e flertar com o risco de exagerar seus esforços na construção de suas imagens. Sherman não esconde suas cirurgias, sua maquiagem pesada. As próteses utilizadas na caracterização apenas reforçam o exagero que é parte de suas próprias personalidades e esforços de projetar imagens mais poderosas, desejáveis, felizes e jovens. É um jogo trágico, pois, quanto mais alta a escalada na busca por padrões tão artificiais, maior a queda e mais escancarados os “defeitos” que buscam mascarar. Sua vaidade serve como medida de sua vulnerabilidade. E claro que sentimos piedade por elas, mas quão fácil não seria desviar esses olhares afiados sobre nossos próprios esforços por mascarar e esconder nossas falhas? E, mesmo como público, tememos esses mesmos olhos escrutinadores que não conseguimos evitar usar. A identificação é tão veloz que também despencamos de cima do deboche para o fundo do desconforto.

image7

Untitled #467. 2008

A escolha por retratar uma mulher em quase todas as obras se coloca como mais do que um desafio a estigmas e estereótipos. É um esforço por tornar as imitações verdadeiras, mas não no sentido de tornar sua representação realística e precisa, já que muitos dos subterfúgios do que está sendo encenado podem ser vistos tão claramente. São imitações verdadeiras na medida em que nos permitem ver a cada retrato não como caricatura, mas como a uma pessoa, e, mesmo que ainda conscientes da imitação, nos assombramos com sua familiaridade. É isso que torna possível a identificação, e essa proximidade nos aterroriza a cada sala, até o momento de deixarmos a exposição. Saímos dela purificados de nossa piedade e nosso medo, mais leves com o sentimento de que nossas misérias e nosso destino não serão tão expostos, de que não precisaremos nos colocar diante de tão inquisidores olhos, nosso defeitos não são tão óbvios, nossas dores não são tão profundas, nossa auto-enganação não é tão pública. Nos sentimos aliviados pela sensação de que estamos salvos uns dos outros, não estamos? E, mesmo dentro da conformidade e proteção de nossas rotinas, sabemos que, enquanto houver arte e heróis trágicos, não podemos evitar a consciência de nossa fragilidade, não podemos dizer que não fomos avisados. Não podemos nos esquecer de aproveitar melhor as horas. Das paredes, as mulheres decaídas de Sherman observam.

image8

Untitled #461. 2007-08

Gustavo Prado é o correspondente do blog em Nova Iorque. Tem saudade do mar, da pedra do Arpoador, da moqueca no Bira, dos amigos. Mas não troca por nada a paz do ateliê no Brooklyn, os shows, os livros baratos e a melhor programação de arte do planeta. Artista formado no celeiro do Parque Lage, participou do Rumos, tem trabalhos na Coleção Gilberto Chateaubriand – MAM-RJ, e foi um dos enviados pela Funarte para representar a nova produção contemporânea no Ano do Brasil na França. Em paralelo as suas contribuições para o b®og, publica um pouco do que tem visto e lido no site www.nyartstudies.tumblr.com. Gustavo também é o CEO do coletivo CAJU, grupo de artistas e designers baseado no Brooklin que cria estampas para o mercado de moda, livros de arte e arquitetura e otras cosas mas. Abaixo a primeira colaboração do Gustavo GP/NY para o b®og.

5 6 1 2 3 4

Navios passando no escuro

– Paul Graham e as ruas de Nova Iorque

A cada dia estamos mais anestesiados e indiferentes à experiência do que nos cerca ou caminha ao nosso lado. Até mesmo a oportunidade de estar diante de uma obra de arte tem de ser intermediada por uma tela, por uma lente. Quando esticamos nossos celulares para fotografar o que está diante de nós, não estamos menos interessados em observar do que inclinados a colecionar e contar ao nosso grupo de contatos o que alegamos ter visto? Mais do que a experiência, queremos o fragmento, o ícone. Assim, a ordem ou hierarquia da nossa percepção parece invertida, o que buscamos hoje é a adequação do que enxergamos a uma certa memória ou acervo. E realizar as expectativas de um público invisível, saciar nosso desejo de aprovação e atenção, contabilizar dezenas do mais estéril juízo estético possível: curtir ou não curtir? Eis a questão.

No entanto, mais do que criticar o atual artificialismo dessa forma de perceber, cabe considerar um dos maiores desafios para artistas e suas obras – sobretudo, fotográficas – na relação com um público cuja forma de ver se tornou formatada, ou indiferente. O quanto nossa disponibilidade para a experiência de obras em fotografia, ou o reconhecimento de seu valor artístico e intensidade poética, parece diluído por uma torrente infinita de fotos – que jorram do encontro entre Iphone, Facebook e Instagram.

Em mais um ciclo de uma sempre bem vida democratização da figura do fotógrafo, no qual todos nos tornamos flâneurs a degustar belos acidentes estéticos, as placas tectônicas que sustentam uma topologia da fotografia se moveram. Em arte contemporânea, a câmera vem sendo paulatinamente devotada à criação de obras mais conceituais, pelo exame e coleção das variações de um fenômeno que se repete, ou no registro de imagens altamente encenadas. A busca pela frágil expressividade do instante foi trocada por narrativas mais incisivas – muitas vezes mais relacionadas à dança, à pintura, ao teatro, ou à literatura – do que interessada em utilizar a autonomia da fotografia com sua linguagem e estilo constituídos, cujo início se confunde com a própria modernidade.

Ao se percorrer uma lista dos trabalhos hoje considerados como marcos óbvios da produção das últimas décadas, fica ainda mais claro qual tem sido o papel da fotografia. Cindy Sherman é ao mesmo tempo modelo e retratista, e tem na fotografia o meio para nos tornar confessores de suas íntimas e inúmeras transformações de identidade. Jeff Wall constrói cenas que transformam nossa forma de observar um evento, testando nossa crença de que tudo que está representado ocupa seu próprio e real lugar. Seria o instante fotográfico garantia de verossimilhança? Andreas Gursky toma distância para nos dar a chance de enxergar nosso mundo super populoso, transbordando de poluição visual travestida de informação, para poder alienar de um dado contexto a mera abstração. Sophie Calle nos leva por seus esforços de cruzar a vida com a arte, e a câmera é testemunha de seus diálogos e encontros com estranhos. Ou seriam personagens? Marina Abramovic usa seu corpo como forma de testar os papéis arquetípicos do artista e do público, contando com a foto para servir de memória das suas explorações e dos riscos tomados. Mesmo o uso da fotografia como base para a exploração dos contrastes extremos entre imagem e representação, como no caso de artistas como Gerhard Richter, é mais largamente considerado.

Com o perdão de tantas generalizações, é inevitável reconhecer tal infalível direção, ao perceber que até o trabalho de uma grande fotógrafa como Nan Goldin, no caso de sua recente exposição Scopophilia, sugere amparar a fotografia na história da arte, tornando o olhar do fotógrafo um ato de apropriação, mais do que mero testemunho, indicando que, mais do que se relacionar com o real, ele seleciona o que dele fotografar contaminado pelo cânone. Ao justapor, na montagem daquela exposição, fotos de quadros do acervo do Louvre a uma seleção de fotografias retiradas de toda sua carreira; ela oferece mais um exemplo da submissão dos recursos fotográficos a uma operação predominantemente analítica.

Sem que haja aqui qualquer interesse por apontar um demérito em tantas obras fundamentais de tão importantes artistas, ou em convocar todos para qualquer saudosismo em relação a uma época dourada da fotografia, o que queremos é perguntar o que poderia fazer com que o fotógrafo voltasse a documentar o cotidiano? Diante de uma atração gravitacional tão forte em outra direção? Como alguém caminhando pelas ruas com apenas sua câmera e olhos escolados, poderia hoje ser considerado um artista, ao invés de um foto-jornalista? O que lhe livraria de parecer tão antiquado quanto um pintor de cavalete diante de uma paisagem? Quantos artistas contemporâneos poderiam ser vistos como fotógrafos, ao invés de artistas que usam a fotografia para o registro e documentação de operações que extrapolam o interesse pelo meio?

A resposta mais eloqüente possível veio pela força, e sob a forma, da obra de Paul Graham, que em 2012 recebeu o prêmio Hasselblad (o equivalente em fotografia ao Pritzker em arquitetura), e grandes elogios da crítica por sua exposição na Pace Gallery de Nova Iorque. Graham é um fotógrafo inglês que, em quase quarenta anos de carreira, alcançou enorme brilhantismo ao renovar a tradição que remonta a pioneiros como Jacob Riis, e, principalmente, ao transformar o legado deixado pelos grupos “New Documents,” e “New Topographics,” compostos por grandes fotógrafos dos anos 60 e 70, como Diane Arbus. Numa entrevista a Richard Woodward em 2007, ao ser perguntado sobre a diferença entre o que faz e fotojornalismo, ele não só nos dá uma resposta ao mesmo tempo lúcida e poética, como também oferece um vislumbre do que mais tarde se tornou um dos grandes temas de sua exposição na Pace: “Eu não quero fingir que sou íntimo de alguém que conheci há apenas cinco minutos. Eu aceito e abraço que muito na vida é como navios passando no escuro. O mundo é feito de 99.9% de estranhos.”

Sob o título de “The Present,” a exposição na Pace Gallery é feita desses estranhos. As fotos em grande formato, sempre em duplas, os mostram andando, e são quase sempre postas próximas ao chão, para nos dar a sensação de que dividimos a rua com seus retratados. A câmera está fixa, apenas o foco se move de uma pessoa para a outra. Mas é esse simples recurso, e o intervalo entre cliques, o suficiente para nos oferecer uma experiência avassaladora sobre o que hoje significa observar.

Algumas das escolhas feitas pelo artista tornam ainda mais precisa a descrição da experiência que temos em nosso habitat – a grande cidade. Nesses retratos, cujos personagens estão sempre alheios à câmera, ele nos mostra lado a lado, plenos de nossas tão óbvias quanto definitivas diferenças de raça, gênero, classe, religião. Parece estudar como negociamos o espaço, como nos projetamos sobre a paisagem e uns sobre os outros. Na rapidez com que tudo isso acontece, apenas a câmera, em simbiose com o olho do fotógrafo, é capaz de aprisionar a vida em seu próprio ritmo. É, talvez, como se pudesse avançar mais rápido dentro do futuro e voltasse para nos explicar o funcionamento de tudo – enquanto ainda acontece. Pois, nós que pertencemos às mesmas engrenagens do tempo e do espaço que correm nas ruas, não somos capazes de tomar a distancia necessária para compreender como estamos integrados; e como refletimos nossa passagem sobre a cidade e obtemos dela as nossas marcas. Precisamos que a fotografia de Paul Graham, em toda sua simplicidade e empirismo, venha ao nosso auxílio e nos mostre.

“The Present” é uma exposição sobre pessoas que, mesmo tão diferentes, são jogadas juntas na veloz e torrencial corrente da vida na grande metrópole. Nos chamando a atenção para o quanto estamos auto-centrados e indiferentes ao fato de que há outros caminhos, tramas, destinos concomitantes ao nosso. Um alerta que vai na direção oposta à mensagem contida em tantos filmes que assistimos, que nos despertam o impulso desesperado de sermos sempre protagonistas e nos tornam cada vez mais incapazes de perceber quão frágil e desimportante é nosso próprio senso de direção, ao lado de tantos outros, tão diferentes e ao mesmo tempo tão apavoradoramente parecidos com o nosso.

As fotos de Paul Graham, alem de resguardar um lugar para a fotografia em meio à maravilhosa – mas em alguns momentos diluidora – opulência da arte hoje, faz uso de seus princípios mais permanentes para nos ensinar a ter mais empatia. Experiência tão necessária quanto constante no que há de melhor na história da arte, talvez por ser ao mesmo tempo tão poderosa quanto a base para uma sociedade mais justa e democrática. Se formos capazes de ter mais empatia, seremos também mais solidários, mais dispostos a reconhecer, pelas nossas diferenças, a importância de nos comprometer com ações conjuntas que gerem mudança.

A fotografia de Paul Graham nos lembra do quanto temos a aprender com as ruas de Nova Iorque.