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FC/RIO

Nosso correspondente Frederico Coelho mandou o texto certeiro aí embaixo sobre a exposição imperdível de Luiz Zerbini na Casa Daros – Rio de Janeiro. [ATENÇÃO povo do Rio ou de passagem pela cidade > amanhã tem show do Chelpa Ferro e a exposição só vai até domingo – Lucia Koch (aka DJ Surpresinha) já confirmou presença]. 

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Luiz Zerbini, um cartesianista tropical

Natureza e cultura são dois polos que alimentam nosso olhar ao nos depararmos com a obra de Luiz Zerbini. Mesmo em sua geometria plena de jogos cromáticos entre superfície e profundidade, em suas esculturas cujo mármore se torna não técnica da eternização, mas sensação de movimento, nos desenhos cujo prazer do artista com o jogo entre caneta e papel explode diante de nossos olhos, a força motriz de todos esses trabalhos é a vontade de Zerbini de devorar o mundo através de tintas e transformar natureza e cultura em um espaço único de compreensão das coisas.

O Brasil e o brasileiro, dentro do mundo visual de Zerbini, é um amálgama alucinado de improvisações, destruição, fascínio e choque que, lado a lado no plano da tela, formam um único ponto de vista sobre tudo e todos. Sua unidade, porém, não existe como princípio que esvazia a sutileza das diferenças. Ao contrário. Ela serve como ética frente às coisas do mundo. Natureza e cultura são um só plano sensível, que se atravessam, se alimentam e se eliminam.

Em suas telas figurativas, Luiz Zerbini atinge, hoje, um dos pontos altos da arte contemporânea que se faz no Brasil. E localizo forçadamente sua obra no plano local da nacionalidade, porque é isso que ele vem pensando ao produzir essas telas. Pedras, plantas, bichos, mares explodem em cores e superfícies, excedem em um barroquismo de texturas e detalhes. Mas, ao contrário dos naturalistas estrangeiros, que, ao longo de nossa colonização, tinham de exibir os espécimes locais como troféus de beleza e opulência dos trópicos, Zerbini sabe que os tempos são outros. A natureza, aqui, é exposta como prova cabal de nossa transitoriedade. Folhas secas, torcidas, no chão, ao lado de bambus cortados, de canaviais dispersos, de flores em cactos, são sobrepostos à invasão voraz da civilização material, adentrando como ruído da paisagem, infiltrando-se como fragmentos de um mundo que parece abandonado e que, aos poucos, é coberto pela vegetação devoradora dos trópicos. Em meio a esse drama de fundo, vemos as cores em serpenteio, as formas virarem rios, escorrendo entre veios riscados, desaguando em mares de estampas.

Essa pintura figurativa, quando transformada em geometria, gera trabalhos em que Zerbini aprofunda seu diálogo com a tradição construtivista brasileira e mundial. Mesmo assim, ela não cessa de aspirar um ponto de vista peculiar. Apesar do rigor de formas e linhas, não é isso que nos prende nessas pinturas. Nossos olhos ficam colados no jogo entre cores e linhas, simulações precisas de movimentos ópticos, invenções de sombras por decréscimo sutil de tonalidades, armadilhas para a visão. Suas telas geométricas nos mostram o prazer do pintor em armar arapucas coloridas para o espectador e para ele mesmo, descobrindo as sutilezas que o grid e sua disciplina apresentam. Se “tudo é quadrado”, como Zerbini disse uma vez acerca de sua visão para as coisas do mundo, o grid é seu paraíso.

Vale ainda apontar que a obra de Zerbini, hoje, é a de um artista que chegou a sua maturidade. É quando vemos o controle pleno de um vocabulário pessoal em síntese permanente. Elementos pictóricos de diferentes tempos em sua obra passam a conviver numa composição. A geometria invade o mar de mármore, as plantas são transformadas em pixels, pedaços de azulejo são cravados na areia de um rio de linhas. A grande mesa, escultura-pintura, é posta como prova concreta dos elementos materiais das imagens nas telas. Há uma linha contínua que costura tudo, cerzindo os pontos desse jogo entre natureza e cultura. Para os que acompanham sua obra, suas telas tornam-se quebra-cabeças, criando um lugar lúdico e misterioso. Essa sincronicidade de imagens também aparece como sincronicidade de tempos subjetivos do artista. Lembranças de infância, desenhos de juventude, fotos pessoais, histórias com suas filhas, os lugares que frequenta, tudo isso é articulado por Zerbini e transformado em imagens que compõem essas telas plenas de acúmulos e de solidão.

Seu país não é uma ode ao Éden de nossa natureza, nem a vitória do materialismo do capital. O país de Zerbini é esse emaranhado de esperança e de vazio, de decadência e opulência. Com suas telas, ele mergulha nos trópicos geométricos. Ou, para usarmos a expressão-síntese do crítico suíço Max Bense sobre o Brasil, em nosso cartesianismo tropical.

Enviei email ontem mais uma vez aos correspondentes aqui do b®og (FC RIO + JC/LA/CA + MC LDN + JD/YALE + GP/NY) solicitando novos textos. Novamente Frederico Coelho prontamente atendeu o chamado e nos enviou suas anotações em texto delirante sobra a COPA do mundo 2014 no Brasa. FC mandou também essas 3 imagens que ilustram o post. (Na barra lateral direita do b®og tem uma apresentação do Fred pra quem ainda não conhece a figura)

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A Copa.

A Copa. Abismo e horizonte infinito. O novo mito salvacionista que alavanca as ufanias e o velho câncer que corrói o caráter de um país. A Copa como síntese entre o Caos e o Cosmos. O momento ápice de um regime faminto de mercado. A Copa é a bocarra escancarada sem vergonha de fazer com a vida convirja para puro ouro dos seus bolsos. Tudo vira Copa. O carro é Copa. A comida é Copa. O banco é Copa. O ar é Copa. Compre o ar da Copa. Salve-se com a Copa . Ame a Copa. Foda com a Copa. Não há poesia na Copa. Há poesia no futebol, sempre haverá poesia nos jogos. Não na Copa. A Copa é, como disse Verissimo, o monólito negro de Kubrick, atravessado nos céus das cidades do país de Neymar, encravado na vertical da terra de Cabral, fazendo sombra nos sentidos, obnubilando as ideias mais claras como a luz atlântica que explode nas faces estouradas e carcomidas de felicidade e petróleo. A Copa foi o salvo-conduto para o ciclo da insanidade pública por parte dos governos. A Copa é a bunda brasileira, a grande bunda-Adidas-brasileira, plena de desejo alheio, potência sexual e excremento. A Copa, aliás, é mais que a grande bunda brasileira balançada pelo mundo. A Copa é a própria energia sexual que move o desejo pela grande bunda brasileira. A Copa é um devir-devoração que arrasta as pessoas para um estado extático de devaneio. A Copa é boa porque é boa. A Copa é péssima porque é péssima. A Copa é mil anos de história, no embate entre natureza e cultura, entre luzes e trevas, entre local e global, entre humanidade e capital, entre o que fica e o que passa, entre civilização e barbárie. A Copa ocupa, violenta, transforma, rasga, funda, cobra, gasta, fascina e vaza. A Copa é uma forma materialista de acessarmos o mais profundo subconsciente coletivo ao redor da animalidade dos corpos em busca de seu espaço no sol. A Copa é a vitória desse corpo dos trópicos que define nossa nacionalidade. A Copa é da refundação dos desdobramentos do corpo em movimento em nosso imaginário, é a vontade atávica de vencer o mundo através desse corpo criativo em movimento, é a percepção de que o mundo assimilou tecnologicamente a naturalidade do nosso corpo criativo imagético em movimento e nos venceu. Agora, a Copa é a chance de, aqui, na terra de Iracema e de Tupã, provarmos que o paradigma da naturalidade do dom da superação da razão pela elasticidade dos músculos malabaristas e dos repiques, surdos e gritos da massa cheia de dente e de fúria ainda imperará no Quinto Império. A Copa é um devaneio que começou em uma época plena da vontade de potencia brasilis em ser centro do mundo. A Copa é fruto de um arranjo geopolítico em transformação. A Copa é uma forma de fuder com a população, porém com legitimidade assegurada pela ideia de progresso. A Copa é o progresso – ou a ideia de progresso que nossa época está oferecendo ao mercado. A Copa é a chance de ouro e o tiro pela culatra. A Copa será lisérgica para os tarados das mesas redonda, excitação máxima, olhos esbugalhados na mesmice repetitiva do VT. A Copa apagará a mente sobre todo o resto, só existe seu imperativo categórico em todos os assuntos. A Copa é monotemática e monopolista. A Copa será na rua, na porrada, no pau e pedra. A Copa é uma bala de borracha. A Copa é uma máscara preta. A Copa é uma vitrine quebrada. A Copa é a tropa de choque. A Copa é o choque. Nunca mais seremos os mesmos depois da Copa. Nunca mais nos lembraremos de quando o mundo não olhava fixo, ao mesmo tempo, para o nosso cartesianismo tropical, para a nossa ciência da gambiarra, para os nossos dispositivos de improviso. Éramos livres para nos fuder ou nos reinventar em paz. A Copa é a prova dos nove. A alegria dos nove. A Copa é o estupro e a paixão. A Copa, é o Brasil. Desafio, desalento, desatino. A Copa é o mundo de hoje. Cuspido, e escarrado.

 

Enviei email ontem aos correspondentes aqui do b®og (FC RIO + JC/LA/CA + MC LDN) solicitando novos textos e uma participação mais frequente. Frederico Coelho prontamente atendeu o chamado e nos enviou suas anotações sobre H.O. (Na barra lateral direita do b®og tem uma apresentação do Fred pra quem ainda não conhece a figura)

Barnbilônia ou HO em NY – Primeiras Anotações

A relação de Oiticica com Nova Iorque começa em uma breve visita durante o ano de 1969, quando ele e Lygia Clark voltavam de um seminário sobre BodyArt em Los Angeles. Hélio visita alguns amigos que já moravam na cidade, como Rubens Gerchman. Na sua visita ao loft em que o pintor carioca morava, conhece os críticos Roberto Schwarz e Silviano Santiago, de quem se tornaria grande amigo nos anos seguintes.

Info

Em 1970, Oiticica participa ao lado de Cildo Meireles e Guilherme Vaz da famosa coletiva internacional Information, realizada no MoMA. Envia seus Ninhos, trabalhos fundamentais para sua trajetória e que estavam presentes na sua primeira e única grande individual na Whitechapel Gallery.

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No mesmo ano, recebe uma bolsa da Fundação Guggenheim para morar em NY e executar trabalhos durante dois anos. Fica sete, ou seja, cinco anos sem visto permanente e, de certa forma, ilegal. Faz milhares de projetos, maquetes, proposições, textos, filmes, mas não apresenta nenhuma obra para a Fundação.

Em Janeiro de 1971 já se encontra habitando o seu primeiro apartamento na cidade, o Loft 4 da Second Avenue com 8th Street. Anos depois, por volta de 1974, ele sofre um assalto e se muda para outro apartamento, na Christopher Street, coração do Greenwich Village. Nos sete anos que mora na cidade, Oiticica não foi a nenhum outro país ou até mesmo a outro estado norte-americano. Também não voltou um dia sequer ao Brasil. Apenas em janeiro de 1978 ele volta ao Rio para morar no Leblon, primeiro na Carlos Góis e depois na Ataulfo de Paiva, endereço em que falece em 1980, vítima de derrame.

A vida profissional de Oiticica em Nova York tem como epicentro uma massa gigantesca de escritos e documentos deixados por ele em seu arquivo. Entre 1971 e 1978, ele escreveu incessantemente em cadernos, fichas, folhas avulsas, tirou fotos, gravou sons, filmou ruas e ideias, bolou livros, filmes, obras e trabalhos grandiosos. Qualquer pesquisa sobre sua obra será sempre baseada nessa documentação que Oiticica nos legou. Documentos que apontam para a presença das ruas e vidas que circulavam por Manhattan (ao menos pela Manhattan de Oiticica). Neles, podemos ler a sua permanente reflexão sobre o Espaço como um dos conceitos definidores de sua obra.

Oiticica traçou alguns eixos de circulação por Manhattan. Tinha em suas andanças seu próprio território. Não que deixasse de andar por toda a Ilha, mas ele teve relações mais orgânicas com certos espaços. Um deles, seguindo a tradição marginal de sua biografia, eram os mergulhos nos bairros do Harlem e do Bronx. Lembremos que a Manhattan de Oiticica não é a cidade mundial perfeita, segura, plena de serviços, arte, mercado e entretenimento na medida certa para tudo e todos. Em 1971/1977 Manhattan era uma ilha inóspita, falida, segregada e plena de barris de pólvora, grupos de estrangeiros guetificados, gangues, tráfico de drogas e perda de relevância política dentro do país.

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Circular pelo Harlem e pelo Bronx no período de Oiticica, portanto, era como circular no eixo-Favela da Mangueira-Morro dos Macacos durante os anos 1960 no Rio de Janeiro. Foi lá nessas regiões da ilha que ele tirou fotos famosas, promovendo experimentos com seus Parangolés. Lá também viu o nascimento do grafite e da arte urbana, conheceu os grupos de poetas negros como Last Poets ou o grupo de porto-riquenhos chamados Young Lords.

Oiticica, por uma questão também ligada ao seu universo sexual, conhecia jovens que viviam o submundo da cidade. Seu envolvimento com o tráfico de drogas local devido ao uso pessoal constante de cocaína durante alguns anos potencializava essas circulações outsiders pelos lados não-brancos da cidade. No final das contas, ele também era um estrangeiro, um latino, um imigrante ilegal como todos os outros.

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A Outra Manhattan de Oiticica também transitava por uma cidade fronteiriça, a parte gay e, chamemos assim, alternativa do Downtown. Era por esse espaço da cidade, entre o SoHo e a 14th Street, que pessoas tão variadas e brilhantes como Andy Warhol, Lou Reed, o cineasta Jackie Smith, Philip Glass, Candy Darling, Patti Smith, Robert Mapplethorpe, Mario Montez, Keith Harring, Chuck Close, Arto Lindsay, os atores do Living Theater ou bandas como New York Dolls, Television e Ramones trabalhavam, almoçavam, bebiam e criavam. Era o local de bares famosos como o Max Kansas City, das novas galerias, dos imensos Lofts doados de graça pela Prefeitura de Nova York para a ocupação de artistas como Richard Serra e Gordon Matta-Clark.

Oiticica viveu com intensidade essa vida da rua na chamada Downtown Art Scene de Manhattan. Entre 1965 e 1975 esse espaço no sul da Ilha que hoje é o milionário e gentrificado SoHo (com suas subdivisões), concentrava a transgressão e a criação de uma era. No caso de Hélio, apesar de não ter se tornado um “Nome” dessa cena, era provavelmente excitante circular entre e conhecer algumas dessas pessoas. Há várias de suas história privadas de encontros que vão de noitadas com Jackie Smith a porres com Alice Cooper.

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Além disso, a música ocupa um grande espaço de interesse em sua vida e ele morava literalmente colado a um dos grandes palcos da cena nova-iorquina da época que era o Fillmore East. Oiticica vai três dias seguidos nos famosos shows que os Stones deram no Madison Square Garden em 1972. Na porta de sua casa na Christopher Street tinha um pôster de Jimi Hendrix que era a senha para o caráter das pessoas: quem soubesse o personagem da imagem, tinha livre entrada em sua casa. Quem não soubesse, nem passava da porta.

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Outro espaço urbano de Nova York que Oiticica se espraiou com gosto foi a região de Wall Street. Por diferentes motivos, filmou e escreveu sobre o pedaço mais ao sul de Manhattan. Em seu filme incompleto Agripina é Roma Manhattan, ele planeja um roteiro que criasse o diálogo entre a Wall Street do seu tempo e a mesma região citada pelo poeta maranhense Sousândrade em seu famoso poema épico O Guesa e especialmente no canto “O Inferno de Wall Street”. O título do filme, aliás, é uma frase do poema de Sousândrade. Hélio não só filmou a região como criou obras e diálogos textuais com cemitérios e Igrejas do bairro, além de fotografar alguns de seus parangolés nova-iorquinos ao pés das, na época, imponentes e recém-inauguradas torres do World Trade Center.

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Nosso correspondente local Frederico Coelho está revoltado porque perdeu o show da Sharon Jones na última terça e também porque não consegue publicar coisa nenhuma no seu velho blogspot. Daí que o homem resolveu mandar esse texto sobre o disco novo do Rômulo aqui pro nosso b®og. (Na barra lateral direita do b®og tem uma apresentação do Fred pra quem ainda não conhece a figura)



Folha de São Paulo: Caminhando para o fim da primeira década do século 21, já é possível identificar um traço comum entre os artistas surgidos na música brasileira a partir dos anos 2000?

Romulo Froes: É uma geração de artistas-operários, surgida em plena derrocada das grandes gravadoras e que, alijada da indústria, se viu obrigada a dar conta de todo o processo de construção de uma obra musical. Esse abandono, aliado ao avanço e ao acesso facilitado à tecnologia, constituiu uma geração especialmente ligada ao processo de gravação. O “som” produzido por ela, talvez até mais que suas canções, é o que a destaca em relação às demais. E, uma década mais tarde, milhares de discos produzidos depois, não é difícil imaginar o grau de excelência técnica a que se chegou. Pois agora, de posse de sua obra e de sua carreira, é chegada a hora dessa geração conquistar uma voz mais forte, que diga a que veio e que rompa a barreira do anonimato imposta à ela.
Em sua recente e excelente entrevista para a Folha de São Paulo, Romulo Fróes expôs alguns dos argumentos mais contundentes sobre a música brasileira contemporânea. Instado pelo jornalista a dar conta de uma grande narrativa crítica sobre sua geração de músicos (a minha geração, a geração dos nascidos entre 1968 e 1980), Romulo não foge da raia, responde perguntas capciosas, enfrenta a necessidade frenética de recorte, de marca coletiva, de sentido em comum dentre as dezenas de bandas, vozes e músicas que surgiram nos útlimos dez anos.
Romulo, porém, em um momento chave da entrevista, reivindica ao jornalista algo inusitado para os dias de hoje. Algo que se não fosse dito por ele, passaria em brancas nuvens na conversa e em todas as outras conversas. Algo que passa ao largo até mesmo dos textos acadêmicos recentes, das brilhantes reflexões em blogs ou matérias de revistas de cultura. Algo que, cada vez mais, fica em segundo plano quando discutimos música ou cultura em geral no Brasil. Romulo pede que os que escrevem sobre a “nova música brasileira”, ouçam e falem SOBRE A MÚSICA.
Qual é o maior equívoco que a imprensa em geral comete em relação aos artistas pós-queda da indústria?

O principal equívoco é não falar de música. Entendo que o jornalismo esteja passando por uma crise muito semelhante à nossa, com o iminente fim de formatos estabelecidos e com as novas formas de apreensão ao nosso trabalho. Mas penso que seria muito mais rico, para todo mundo, se tentássemos entender este momento em que vivemos, através da produção autoral. Minha geração foi afastada do conceito de autoria. É entendida como um todo, sem se singularizar –e este é um erro não só do jornalismo, mas do ouvinte em geral. Não somos parecidos, somos muito diversos. Mas insistem em nos ligar e isso se dá menos por um pensamento crítico, mas muito mais por uma análise, quase sociológica. Eu, por exemplo, sou muito mais reconhecido pelo que penso, pelo que falo em entrevistas, que por meus discos. Não que não me interesse pela discussão –muito pelo contrário. Mas ficaria muito mais satisfeito se ela surgisse estimulada por minhas canções e não por minha fala. Acredite: tudo o que digo está incorporado à minha canção e construído ao longo dos meus quatro discos. Mas, nesse tempo de agora, parece não mais haver espaço para a fruição estética.
Romulo aqui vai direto ao ponto: nossa geração foi engolida pela rasura do papel do autor. Pela pressão em não sermos mais autores capazes, autores que atingem níveis de qualidade dos autores de outrora. Por isso não somos individualidades criativas, mas somos impelidos ao afã modernista de formarmos de alguma forma “um movimento”, uma “tendência”. E nesse esforço de unir as pontas soltas, criam-se perspectivas artificiais de convergências. O fato de Curumim participar de um disco de Romulo ou do Arnaldo Antunes não quer dizer que eles fazem parte de um movimento, mas, como diria Rogério Duarte, eles são parte de um momento. Um momento que, como mostra Romulo em suas palavras e seu som, está inserido em um movimento amplo da cultura brasileira, que incorpora a precariedade profissional do mercado fonográfico com a expansão acelerada dos recursos de registro, produção e distribuição da mercadoria música. Romulo está na rede, liberou seu disco para Download e venderá o disco físico também. Veicula informações para uma ampla comunidade de consumidores/parceiros de seu trabalho.
A geração não carece de potencial mercadológico? Não estamos criando um pensamento de “como eu não preciso de dinheiro de gravadora pra fazer disco, posso fazer o que eu quiser; se posso fazer o que eu quiser, não preciso agradar a ninguém”?

Não é verdade. Essa geração, como qualquer outra, tem artistas que fazem canções pop, mais intelectuais, mais experimentais, populares, cafonas, ingênuas, desencanadas, engajadas: tudo igual a qualquer época. O perverso é que estejam todos no mesmo patamar, sem que se distinga os graus de popularidade através de sua própria música. Estamos todos no mesmo barco, atravessando os mesmos mares revoltos.
O fato de estarmos todos no mesmo barco, de muitos músicos no Rio, em São Paulo, em Belo Horizonte, em Cuiabá, Em Porto Alegre, em Belém do Pará estarem trabalhando de forma colaborativa não quer dizer que sejam coletivos ou pessoas esteticamente vinculadas umas as outras. Não se configura aqui necessariamente um compromisso estético coletivo como foi o Cinema Novo ou o Neoconcreto. São amigos, músicos que se conhecem a partir dos seus trabalhos, festivais, shows, espaços em comum de atuação (Como o Studio SP ou o circuito de SESCs em São Paulo ou o que o Solar de Botafogo começou a fazer recentemente no Rio de Janeiro). Há uma necessidade, e eis a importância do alerta de Romulo, em se falar mais dessa suposta convergência geracional do que da capacidade criativa dos músicos e compositores. Não se discute os discos do ponto de vista musical. A discussão principal é sempre guiada pelo ponto de vista “social” ou sociológico, como preferir.
Sua geração tem medo do sucesso, é isso? Ela precisa se “desproteger”?

A questão não é ter medo do sucesso, a questão é não querer demais o sucesso. Porque o sucesso como o conhecemos –da mitificação, do artista que entende e traduz uma nação– talvez não se realize mais. O nó dessa geração é que ela não precisa dialogar com o sucesso para produzir sua obra, talvez por isso mesmo nunca o alcance.
E o disco de Romulo? Um Labirinto em cada pé é um disco fundamental. Para entender o que Romulo diz, devemos ouvir sua música. É aí que reside sua grande reivindicação. Romulo, através das letras de Nuno Ramos e Clima, através do som de sua banda, incorporando o cavaco de Rodrigo Campos, transformando suas músicas em um equilíbrio das duas frentes exploradas no disco anterior, No chão, sem chão, de 2009. O samba impera não como espaço de reverência, mas como trampolim para vôos amplos sobre a base clássica de percussão e cavaco, como na redonda “Rap em latim”, cantada por um malemolente Arnaldo Antunes e seu final elegante. A bateria também cumpre seu papel de trio de bossa jazz enquanto guitarras cruzam os céus dos espaços sonoros de cada arranjo. Há canções secas, sem refrão, há canções que abrem e brilham quando crescem em seus refrões, sentimos um eco de afrobeats, um certo ar da cozinha dos Hermanos (a bateria de Barba, principalmente, que é marcante na música pop brasileira da última década ao lado de bateria de Pupilo e Domenico) em “Boneco de Piche”,  música que casa com “Jardineira”, outra que aponta para a aposta em uma filosofia sombria e, paradoxalmente, solar do samba.
As letras de Nuno Ramos e Clima são cravadas de Paulinho da Viola, Nelson Cavaquinho e Campos de Carvalho, de absurdos que são enunciados na mosca por Francisco Bosco em seu texto de apresentação do disco no blog de lançamento. Letras que não falam com ninguém, que narram personagens impessoais, errantes entre objetos e sensações, cristos redivivos, entre marchas carnavalescas que falam de morte, de fumaça, de pedra e sol, de cus de urubus, de sexos confusos, fomes, caminhadas, de muros, de mares, de madrugadas, silêncios, cassinos da Urca e arcos da lapa. Quem leu os livros de Nuno Ramos sente-se confortável (se é que podemos usar essa palavra neste caso) com a opacidade e a ausência de referências explícitas ou histórias definidas nas letras do disco. Um mundo caótico, gorduroso e assim mesmo, leve, cômico, que sabe rir de sua própria tragédia.
Romulo faz rock em 2011, no Brasil. Ponto. Seu rock está defendido em sua guitarra e no seu baixo, em sua bateria e na sua voz. Mas tudo isso é profundamente mergulhado na sua ideia de cultura brasileira, na sua percepção de que o samba não é um gênero ou um arquivo, mas sim um espaço criativo que todos nós podemos entrar e reorganizar no âmbito da música pop. O samba que foi feito pelos Mutantes, por Sérgio Sampaio, pelos Novos Baianos, por Jards Macalé, Itamar Assumpção, Luiz Melodia, Pelo + 2, por Caetano Veloso nos seus dois últimos discos, o samba de Jorge Ben em “As rosas eram todas amarelas”e “Charles Jr.”, o samba transtornado de Curumim, da Nação Zumbi, de Ronei Jorge, de Lucas Santanna, o samba que atravessa todo compositor brasileiro que se interessa pela informação e a história da música brasileira.
A música que pode definir isso é “Cilada”, uma espécie de maracatu, com sua bateria solta e sua marcação marcial, seu violão de cantador e sua guitarra climática, desenhando distorções. Eis que quando nos encontramos tranqüilos, indo em um belo e longo passeio nostálgico do cassino da Urca ao Cacique de Ramos, uma mulher surge, lambe a voz que canta,ela  lembra, ela diz ah sei lá, e aos poucos leva o ritmo da música em uma espiral crescente de distorção/tensão, somada a uma voz feminina que não alivia, mas sim precipita o fim fantasmagórico da canção que inicia singela e termina sinistra.
Um labirinto em cada pé é um disco que apresenta sem firulas o que o seu autor nos diz na entrevista: é preciso ouvir a música que está sendo feita hoje, sem filtros geracionais, sem buscas de consensos ou ligações com as modas. Romulo Fróes é um dos principais músicos brasileiros de hoje e um dos seus principais pensadores. Para além de cenas. Para além de matérias que precisem de pautas. Um músico que se impõe cada vez mais pelos seus discos e pela sua capacidade de traduzir em sua sonoridade os nossos tempos luminosos e trágicos.
O que é preciso para que essa sensação de “fase de transição” termine? Que a indústria, o que quer que ela venha a ser, encontre seu caminho? Ou é uma questão existencial dos artistas?

Tempo, é preciso tempo, mas parece que não o teremos mais.
Frederico Coelho, junho 2011

Nosso correspondente local Frederico Coelho foi a Brasilia falar no seminário sobre Helio Oiticia e depois saiu para beber com Sergio Martins e Felipe Scovino. Chegou ontem ao Rio e mandou sua terceira coluna. (Na barra lateral direita do b®og tem uma apresentação do Fred pra quem ainda não conhece a figura)

Jac Leirner

Dinheiro é um pedaço de papel?

Um dos temas que debatemos diariamente no meio cultural brasileiro atual é o seguinte: qual o valor do meu trabalho? Os que trabalham com o que estão começando a chamar por aqui de economia criativa ou com ações relacionadas ao meio intelectual e estético vivem se fazendo esta pergunta pois o mercado sempre lhe pergunta isso na hora do contrato. Nas artes visuais, essa pergunta é mais dramática: “como faço para ganhar dinheiro como artista”? Ou melhor: “se vivo entre o limite trágico-libertário do criador e a necessidade pragmática das contas no fim do mês, como posso fazer dinheiro”? Ou mais: quem paga o artista? O mercado de arte? O colecionador? O Estado? A galeria? Ou simplesmente o seu investimento concentrado em seu trabalho? Quantos intermediários o artista precisa para circular sua mercadoria e poder vendê-la como forma de sobrevivência no capitalismo nosso de cada dia?

Outro exemplo deste dilema, posto de outra forma. Na música, as páginas do Segundo Caderno d’O Globo alimentam, depois de séculos, uma polêmica pública. Política? Talvez. Cultural? De certo ponto de vista sim. Mas a polêmica é, mesmo, relacionada a quem paga quem. Na troca de cartas entre Antonio Adolfo, ECAD, Ronaldo Lemos, Joyce e nos artigos de Hermano Vianna e de Caetano Veloso (não tomando nenhuma posição contundente e deixando em aberto a dúvida tensa, o que também é importante), todos discutem, cada um do seu ponto de vista, o pagamento (ou não) de direitos autorais na música brasileira. Quem debate são os jovens músicos da era digital, os novos nomes da cena musical brasileira? Não. Quem debate e defende posições são compositores ligados à geração que fundou a MPB – e, de certa forma, a profissionalização do músico brasileiro nos aos 60 do século passado. São eles que debatem em público com novos agentes da cultura-século XXI que apresentam a opção legítima e complexa de refundar formas de distribuição do produto, que reivindicam uma proposta descentralizada de direitos, uma nova forma de circulação livre das informações e conteúdos culturais.

Simplificando deveras, os proponentes do Creative Commons constroem sua representação pública como os que querem ser risco, experimento, invenção, liberdade, criação de laços sociais universais – tudo que a arte alimenta no mundo e no homem; já os compositores e músicos passam a imagem de tradicionais, institucionais, nacionais, exigem direitos, querem ser reconhecidos como trabalhadores da cultura. Eles querem o reconhecimento de uma vida profissional que precisa do controle do mercado: ouviu, paga. Sem julgamentos de certo ou errado, quem trabalha merece seu reconhecimento simbólico e – no capitalismo – financeiro. Você vale mais se trabalha mais, ou melhor. Grandes compositores vendem mais, arrecadam mais, tocam mais e por isso não dependem tanto do ECAD quanto pequenos compositores que tem um hit ou apenas dois discos bem sucedidos. E o que os novos músicos e compositores têm a dizer sobre isso? Iniciam suas carreiras apostando nas novas formas de circulação da mercadoria “música” ou se aferram ao direito garantido de um pagamento via recolhimento de imposto por parte de uma agência central como o ECAD?

E os artistas visuais? A arte é imagem e a imagem é o que mais circula no mundo atual pela web, sem dúvida. Um trabalho pode ser registrado por terceiros e circular infinitamente através do Google image. Os sites de artistas estão aí escancarados para quem quiser ver, assim como livros e outros suportes que divulgam essas imagens. Porém, nada disso substitui a EXPERIÊNCIA de estar com ou conviver com a obra (ir à exposição, ao museu, ao ateliê ou comprá-la para ficar admirando em casa). Eu posso ouvir a obra completa do Caetano ou da Joyce em casa e não perderei tanto assim do seu objetivo inicial quando foi feita. Mas se eu ficar em casa vendo por livro uma obra de Richard Serra ou Chelpa Ferro, não viverei nem um décimo do que realmente está em jogo durante sua criação e exibição. Assim, o que o artista vende não é a execução da obra (como na música) ou a máxima possibilidade da série (como o cinema/DVD e a música/CD). Quanto mais o artista torna-se produtor de séries infinitas e mercadológicas, vazias de questões pertinentes ao meio crítico e histórico da arte, menos ele vale como artista para o seu campo de pares. Vide Romero Brito, artista milionário e totalmente desprestigiado entre os artistas brasileiros. Portanto, o artista vive de VENDER SUA OBRA. Ou de bolsas. Ou de prêmios.

Um jovem artista, hoje, no Brasil, quer o que? Claro que esta pergunta é retórica, já que cada pessoa vive a partir de uma motivação pessoal insondável aos outros. Porém, vamos fazer esse esforço de generalização: um jovem artista hoje no Brasil inicia sua carreira JÁ VISLUMBRANDO a profissionalização através da arte. E isso não é um problema. Isso é o amadurecimento de um sistema da arte que conta com universidades, cursos, galerias, escolas, certa expectativa de colecionadores etc. O mercado vive do fresh and new, numa espécie de capitalismo à La Pound (Money is news that stay news). Assim, novos artistas disputam com artistas maduros ou consagrados o mesmo campo, as mesmas listas, os mesmos prêmios. A questão é saber se todos precisam utilizar as mesmas PRÁTICAS para se relacionar com esse sistema que o Brasil constrói a duras penas nos últimos cinqüenta anos. Há muitos caminhos para se estabelecer como um artista profissional (no sentido de ocupação)? Ou há apenas os caminhos estreitos que serão reproduzidos por todos, sejam eles radicais, conservadores, inventores, diluidores, mestres ou monstros?

Semana passada Daniela Name postou em seu blog alguns comentários e artigos refletindo sobre a ausência de artistas cariocas na lista final do Premio Marcantonio Villaça deste ano – assim como no PIPA do ano passado. A repercussão foi ampla dentre os que freqüentam o blog. A questão que Daniela colocou é mais um sintoma do que um problema, apesar do sintoma raramente ser debatido ou posto em xeque. O problema mesmo não é entender a precariedade institucional de uma cidade em contraste com a organicidade entre insitituições, galerias, compradores, museus e universidades. O problema é entender se pode existir uma especificidade em cada espaço criativo regional ou se todos terão que trabalhar e viver sob o mesmo diapasão que emana do grande centro financeiro. É o mercado que consagra a arte feita em São Paulo? Não creio. Assim como não é o fracasso institucional do Rio de Janeiro que impede a ascensão de artistas cariocas em certos meios. A questão é saber, novamente, o que o artista espera do seu trabalho como forma de vida, profissão. O investimento agudo e solitário na linguagem que se escolhe como arte é um trabalho árduo e, na perspectiva romântica porém real, sem retorno financeiro garantido. Como investir na linguagem e ser um profissional remunerado por um mercado volátil e uma ausência completa ou quase completa de aquisição de obras por parte das instituições e do Estado? Matemática difícil de se resolver.

Mas a grande notícia, o grande tema da história cultural brasileira atual é a promessa de Jorge Ben(Jor) em apresentar um show completo com todo o disco Tábua de Esmeraldas, tocado do mesmo jeito e se possível com os mesmos músicos. Isso é a maior notícia do ano. E não tem preço.

 
Frederico Coelho – fevereiro de 2011
esse texto é dedicado aos meus camaradas Sergio Martins e Felipe Scovino

Nosso correspondente local Frederico Coelho foi para Buenos Aires fimdesemana passado e mandou a segunda coluna de lá. Coluna-crônica colada abaixo com foto de FC mesmo. (Na barra lateral direita do b®og tem uma apresentação do Fred pra quem ainda não conhece a figura)

Charles entre Cabrera e Thames, 15:30
Buenos Aires – verão de 2011: 

Charles e sua namorada nunca saíram do Brasil. Não usam roupas da moda, não estão com ipods, não ostentam nem tatuagens e nem óculos escuros. Pela primeira vez, conseguem juntar um dinheiro e pagam suas passagens e pacote da excursão em 12 vezes sem juros. Os décimos-terceiros dos dois guardados em um natal magro seguido de um réveillon na casa da sogra e, finalmente, a viagem ao exterior. Buenos Aires. A Argentina é logo ali, ouvia Charles de seus amigos. Buenos Aires nunca sai de moda, lia a sua namorada na Caras. No verão é mais barato, diziam todos aos dois. A cidade do obelisco e do doce de leite é a plataforma de início quando não se tem grana para irmos direto para a Disney. Charles queria viajar para outro país e Buenos Aires é bonito. Afinal, parece a Europa.

Charles não fala espanhol ou qualquer outra língua, apesar de ostentar um nome internacional. Quando ele fala “Charles”, o sotaque de Piracicaba torna-o quase um inglês operário de Manchester. Ele sabe que os últimos anos na escola técnica valeram à pena, que o emprego novo veio junto com a possibilidade de um casamento e de uma casa nova. Sua namorada não vai deixá-lo escapar, já era. Antes disso tudo, antes de ter que comprar televisão de plasma, abrir crediário de móveis e fazer um curso de especialização em contabilidade, Charles quis viajar para conhecer o mundo. Guarujá. Rio de Janeiro. Buenos Aires. Miami, quem sabe. O sonho não tem limite.

Charles tem um computador com internet banda larga, porque gosta muito de navegar e está no facebook após a crise do orkut. Vê filmes piratas, mas também vai ao cinema quando dá. Ele se informa pela internet sobre a cidade que ele visita, sua primeira vez fora do sudeste. Charles estuda e descobre um site em português com dicas sobre os bons restaurantes. Há um que promete ambiente agradável e comida farta. Charles descobre pela wikipédia que o bairro do restaurante é o quente do turismo mundial. O peso argentino está fraco frente ao real. Um breve almoço, uma extravaganza, por que não? E Charles vai ao restaurante da moda com sua namorada.

O restaurante está cheio, há uma quase aglomeração na porta. Calor. Todos falam alto. Noventa por cento dos que esperam são brasileiros (no fundo, todos também são Charles). Ele resolve falar, mas recua quando a atendente Julieta lhe diz que a mesa pode demorar quarenta minutos. Charles se abate. Viera de longe, confiara na internet. Ele vacila. Sua namorada insiste em comer ali. Ele decide aguardar. Charles espera, um pouco constrangido dentre seus compatriotas de todas as idades e classes. Como Charles, todos ali querem o mesmo, independente de classe ou região do Brasil. Quem não quer se sentir exclusivo, feliz e bem servido na viagem até a cidade bonita, barata, educada, espalhada e perto de casa, a camarada BAS? Mas Charles, ironicamente, verá pouco da cidade. Seu percurso de excursão só permite uma tarde livre dele com a namorada. E ele escolhe justamente o restaurante da moda. Mesmo que a carne seja muito crua para eles e as porções pequenas, mesmo que eles não bebam vinho, mas sim refrigerante, ele estava lá. Nos outros dias, Charles ficará como gado andando pela Florida, vendo a Plaza de Mayo e rodando as ruas e a pracinha de San Telmo. Mas nesse dia, ele estava fazendo a viagem DELE. Charles gostaria de ir além?

Em Buenos Aires, neste verão, a profecia de Elio Petri se confirma e a classe operária vai ao paraíso. Entendemos de forma real a experiência de uma população que ascendeu economicamente, que enriqueceu e criou novas fronteiras de lazer no seu cotidiano. Entendemos, em suma, uma das faces dos últimos anos de pleno emprego e de crediário farto, da explosão da tecnologia popular gerando em telas digitais o ecletismo estético, a educação truncada e os gostos conservadores das novas classes médias e altas do Brasil. A cidade fala português em todos os ambientes, de todas as formas. Quanto mais ricos, mais alto falam, mais espaçosos são (nos museus). Quanto mais pobres, mais alto falam, mais espaçoso são (no calçadão turístico do centro). Somos espaçosos. E falamos alto. É o verão da Classe A, B, C, D, com seu dólar fraco e seu real forte, com os pacotões de agência de viagem e os bônus de empresas no fim de ano, com os feriados longos e as liquidações.

O brasileiro, em sua ampla maioria, é provinciano. Ele precisa se sentir em casa em qualquer lugar. A saudade do feijão da mamãe que traz de volta o jogador de futebol, a ansiedade frente à fila do aeroporto como se estivesse no bar da sua esquina, a coletivização da excitação em blocos de senhoras e rapazes invadindo lojas e parques, a transformação instantânea de qualquer lugar em carnaval ou micareta, a prepotência financeira, a falta de cerimônia com os hábitos e a cultura alheia. E isso não é uma via de mão única. Somos instados e nos sentir “bem” nos estabelecimentos da cidade. Em qualquer loja que você entre, toca música brasileira. Sofisticada e popularíssima. O Táxi toca o novo clássico sertanejo. O bar cool toca o disco Casa de Samba (e uma brasileira canta junto e alto em sua mesa). A loja de departamento toca funk. Os jornais noticiam os gols de Neymar. Livros de Clarice Lispector dominam mesas de lançamento nas melhores livrarias. O Brasil ocupa um vasto espaço no verão portenho. Buenos Aires tornou-se perto demais. E Charles também está lá. Pronto para se expandir a partir da expansão do nosso país. Charles é uma crônica do Brasil de hoje: sempre para cima, mesmo que para qualquer lugar, mesmo que sem jeito ou trajeto definido. Uma população que aprende a voar se jogando no abismo. Voa Charles, voa.

Frederico Coelho, janeiro 2011

Caros leitores, dessa vez não é um correspondente internacional não. É um correspondente interior. Um enviado ao centro da cidade purgatorio da beleza e do caos. Um reporter pesquisador que quer descobrir o tamanho do caroço de manga que anda engasgado na garganta da capital mundial do bundalelismo, da roubalheira e do travestismo. foca mandando noticias do miolo do corpo esquartejado d’Janira, pensamentos do coração do Rio e entrevistas com as melhores mentes insanas do pedaço. Os editores dessse pequenino b®og resolveram que urge ter um correspondente nacional-local com raizes fincadas no Cacique de Ramos e também no Suvaco do Cristo. Foi decidido em assembleia extraordinaria na noite de ontem o seguinte: Só Coelho, que é prof doutor em Helio Oiticica, amigo do Bafo da Onça e cacique Dj Miró da festa Phunk, pode em nossos dias tirar a polaroid digital do aqui, do agora e do que será o amanhã. Sarava Fredin! Bemvindo ao b®og. La vai a primeira coluna do garoto. É noise! (Aí na coluna lateral tem uma apresentação do Fred pra quem ainda não conhece a figura)

foto do Mauricio Valladares (o homem nos bastidores da noite de ontem)
FC #1
Tempestade Emocional

Fazia calor na cidade, mas o vento anunciava preguiçoso um temporal. O teatro lotado, mas quieto. Tudo, digamos, um grau acima. Uma noite calma no disperso, caro e internacional verão carioca. No meio do palco imenso, uma moça e um rapaz. Duas guitarras, um baixo, uma bateria muito bem tocada, orquestra de cordas, trio de metais. Nenhum DJ. Ele tocava violão, sanfona, teclado e piano. Marcelo Jeneci é um nome meteórico na música brasileira que saiu de trás das bandas de músicos famosos e dos teclados do grande disco de Arnaldo Antunes (sempre ele) e vem ganhando o palco central da, ainda, MPB. Sim, o show de Jeneci confirmou que ainda existe o que chamam de MPB, com suas bases na cultura popular brasileira e na força da CANÇÃO. Alou rapaziada, a canção popular brasileira não acabou. Janeci não tem nem trinta anos e voou por décadas e décadas de referências e diálogos melódicos e literários presentes na nossa música. Quem foi ontem no show de Jeneci viu isso. Goste ou não, louve ou não, ontem foi exibido um momento de Afirmação potente da nossa canção em todas suas possibilidades, em toda sua herança e esperança. Toda a geração de músicos jovens que vêm ocupando as páginas e telas do Brasil contemporâneo são, em sua ampla e vasta maioria, cancionistas. A turma de SP, a nova turma do RJ, eles fazem canções. E Janeci, ontem, no Casa Grande, mostrou belíssimas canções. Nada nostálgico, nada conservador, nada presumível. Canções atemporais na maturidade em que foram compostas e, principalmente, defendidas no show. 
Em 1968 os Mutantes se apresentavam no Teatro Casa Grande, exatamente ali onde ontem Jeneci se apresentou. Onde arrebatou um respeitável público que dificilmente prestaria atenção nos seus delicados e intrincados arranjos caso o show fosse no Circo Voador, por exemplo. Os Mutantes, ainda garotos, no Leblon, eram dirigidos por Maria Esther Stockler e José Agripino de Paula, proclamando um enclave alucinado de São Paulo na zona sul carioca, perto do clássico bar Antonio’s. Será que Roniquito atravessou a rua para conferir a juventude colorida do espetáculo? Será que Paulo Mendes Campos tomou outro ácido para ver Rita Lee Jones e os Irmãos Batista tocando o som tropicalista? Ontem Jeneci desembarcou São Paulo e sentado no piano lembrou Mutantes, pois Laura Lavieri cantava pequeno e afinado como Rita e ele em alguns momentos foi Arnaldo Batista. E Arrigo Barnabé. E Elton John. E Rick Wakeman. Ele foi também Roberto Carlos, Thom Yorke, Belchior, Los Hermanos, Radiohead, Odair José, Dominguinhos, Deodato, ele foi sereno e seguro, genuinamente dedicado ao seu som.
Hoje em dia é quase impossível um show valer mais do que um CD. Geralmente o show é a execução melhorada dos arranjos do disco. E Jeneci ontem fez isso. Porém, fez isso com tanta força, beleza, tranqulidade e, principalmente, felicidade, que sua música calou fundo em todos que estavam a fim de estar ali para ver um novo som. Convocou o lendário – e cada vez mais conhecido – Arthur Verocai para conduzir os arranjos das cordas, em uma participação discreta, elegante, como tudo no show. O acordeon com as cordas, o piano com as guitarras, Tulipa Ruiz brilhando e ao mesmo tempo sacando de forma também altamente elegante que o show era de Jeneci, sua vocalista Laura singela e tranquila, a bateria ora clássica, ora hardrock, as canções de Roberto, o despojamento sem nada além da música sendo executada sem afetações pela banda, suas letras contemporâneas e clássicas ao mesmo tempo, nada diferente, a reinvenção criativa dos mesmos temas de nossas canções de rádio e remorso, o amor, a saudade, a praia, o sol, o mar, um navio a navegar, um avião a decolar e uma chuva insistente. Uma chuva que aparece várias vezes em suas letras e pode ser vista como a metáfora do clima melancólico de suas músicas. 
Talvez seja por isso que Jeneci elogiou enfaticamente seu muso inspirador Marcelo Camelo na participação do compositor de barba e bermuda. Camelo sempre deixou chuvas e tempestades em suas músicas, mesmo nas solares. O belo momento deles dois tocando em violão e piano “Pois é” ficará longamente marcado para quem gosta das composições de Camelo, sem dúvida. Alegre e choroso, solar e chuvoso. Jeneci invejou a bermuda de Camelo. Pensou em se mudar para esta quente cidade. E disse que a marca que veste seu show se chama Garoa. Ao sair do show, todos sorriam calorosamente mesmo que espremidos pela chuva que caía calma na cidade. 


Frederico Coelho, 11 de janeiro de 2011