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penalti

Fred Coelho escreveu esse texto matador hoje no blog dele. E ele diz que é apenas a primeira parte…

O homem molda sua dor das mais variadas formas. Molda sua vida em pedaços, molda os instintos em conflito permanente com o universo. O homem define os traços fundamentais de sua geografia pessoal, traça linhas de desejo e deriva por segundos no imponderável. Nas linhas brancas de um gramado ou nas linhas duras de uma haste de ferro a decisão inadiável frente à perspectiva absoluta do espaço aberto: o gol e a parede, a rede e o prego. O apito e o esmerilho rasgam o silêncio do ateliê: pênalti.

No universo do futebol, o pênalti não é um lance a mais na dinâmica do jogo. O pênalti é um momento fora do tempo do jogo, momento em suspensão, momento em que o coletivo de vinte e dois jogadores converge para um duelo. Para um embate decisivo entre o batedor e o goleiro. A atomização da esperança e a explosão da alegria. O pênalti, assim, torna-se poesia na longa prosa do jogo, caudalosa e palavrosa, com apitos, gritos da torcida, palavrões, técnicos aos berros na beira do gramado. No pênalti, ocorre o corte seco na balbúrdia da batalha. O silêncio que precede o esporro. Na narrativa de noventa minutos, a concisão dramática da forma mais perfeita. No pênalti, há o haicai do batedor que corre frio sem olhar o goleiro, há a poesia pedra e faca cabralina do batedor que chuta de bico no meio do gol, há o parnasianismo forma pura do chute que coloca a bola no canto indefensável, mesmo que o goleiro pule no lado certo, há o poesia maldita e malandra que faz a paradinha desrespeitosa e sedutora.

Após o chute, a fração de segundos que definem o lance se finda e como o estouro de uma bolha tudo volta ao curso barulhento e veloz do jogo coletivo. A vida segue, mas ela nunca mais é a mesma. No embate individual entre o goleiro e o jogador, o destino de milhões. O átimo definitivo de vidas, carreiras, campeonatos, políticas, nações. O pênalti é o começo e o fim.


sem título, 1993
ferro pintado
17º Salão Carioca
Escola de Artes Visuais do Parque Lage
Rio de Janeiro
foto: Eduardo Coimbra

Raul Mourão olhou o pênalti e viu mais do que isso. Ele viu a PERSPECTIVA PLENA desse momento definitivo. Em Penalti, a marca do cal é o ponto de fuga do quadro das traves. O circuito se fecha na continuidade dos traços, na definição do perímetro de execução. Raul define plasticamente TODAS AS POSSIBILIDADES de ação entre o batedor e o goleiro. O Pênalti de Raul, porém, não permite erros, não trabalha com a bola fora. É pura certeza, é plena clareza do craque. Entre as traves, o trajeto da bola e a marca do cal, não há escapatória. Todos são o mesmo traço da mesma trama. A arquibancada aguarda. O batedor é frio. O goleiro se mexe sobre a linha. Tudo pronto para o desenlace. Tudo amarrado nas linhas de Raul.

Em seu vídeo, seu pênalti desmancha a mera dimensão futebolística e ganha o espaço para além das linhas de uma grande área. Pênalti torna-se um múltiplo que ganha ONZE diferentes posições com apenas um movimento. Um prego na parede, a peça e nada mais. A marca do cal torna-se secundária frente as possibilidades diversas de conexões e formas que cada face presa à parede pode nos trazer. A simplicidade da idéia é assombrosa, o resultado é potente. As traves de futebol perdem sua importância e Raul mostra que basta olharmos para o outro lado para mudarmos tudo de lugar. Como no futebol, cada movimento redefine a dinâmica inteira do jogo. E ao contrário do pênalti marcado pelo juiz, no pênalti de Raul sempre há uma nova chance.

continua