Entrevista com Caetano na CULT
foto de Emiliano Capozoli Biancarelli ![]() |
CULT – Há muito afeto dedicado ao Rio nas letras e na ambientação sonora deste último disco. Por outro lado, comparado àquilo que você fala de SP, tem-se a impressão de que o Rio está passando por um grande deficit de autoestima. É só impressão?
CULT – Seu trabalho anterior, Cê, é um disco de rock. Antes dele, A foreign sound trazia canções estadunidenses (apesar de pouco eufônico, considero esse o termo conceitualmente correto), por meio das quais você pensava as relações entre a música do Brasil e a dos EUA. Agora você apresenta um disco, zii e zie, com a noção de “transamba”. Pois bem, por que dedicar um pensamento cancional ao samba, nesse momento? Há alguma razão cultural, histórica nesse interesse? E como você entende essa noção de “transamba”?
Achei gozado você dizer “estadunidense”, pois no blog discuti com uma argentina que implicava com a palavra “americano” para caracterizar os que nascem nos Estados Unidos. Mas é que não gosto de fingir que não se sabe do que se está falando, quando se sabe. Se digo “filme americano”, “música americana”, “ele é americano”, todos sabem do que estou falando. Para ir fundo na questão do nome do país mais rico do mundo, temos de começar por constatar que ele não possui um. Tanto eu em Verdade Tropical quanto Godard em Eloge de l’amour dissemos isso extensivamente. “Estados Unidos” não é um nome – e América é o nome do continente em que aquele país (aliás o nosso também) se estabeleceu. Os hispanoamericanos escrevem “estadounidense”, com o “o” de “estado” (mas sem o “s” do plural). Em português, esse ditongo “ou” pesaria no meio da palavra. Evitamos. A nossa palavra é um pouco melhor. Mas me é ainda tão incômoda que não vejo no esboço ressentido de problematização do nome do irmão do norte razão para usá-la. A Foreign Sound tem muito a ver com isso: é um disco rechea-do de inteligência sobre os meandros da força imperial. Há dicas de sobra nas notas do encarte a esse respeito. O rock de Cê vem eivado de discussão íntima e pública dessa complexa textura histórica. O transamba de zii e zie é complemento natural desse passo. Isso é parte do que eu diria, se estivesse constante e conscientemente levando em conta esses aspectos da criação a que você se refere em sua pergunta.
Quando o discurso sócio-político brasileiro se racializou, para o bem e para o mal, eu cedo meditei sobre essa canção. Não queria deixar de contar isso, levantar essa lebre. Depois veio Fidel escrevendo que eu e Yoani Sánchez (que tem um blog crítico da vida em Cuba) somos exemplos de submissão ao imperialismo ianque. Depois meu pé atrás com os sociolingüistas, que passei a conhecer um pouco melhor justamente porque revelei meus grilos com eles. (Acho que eles podem contribuir muito, mas temo que eles tenham estado demasiado eufóricos com a cientificidade da matéria que estudam e ponham a gramática sob suspeição, antes que encorpemos um projeto de letramento das massas brasileiras – e tudo isso demasiado evidentemente atrelado à política partidária e mesmo eleitoral.) Assim, tudo no blog virou discussão de botequim. Bem legal. Mas eu não creio que eu tenda a me dedicar mais à discussão de ideias do que já tenho feito. Não estou preparado para fazer isso sistematicamente.
CULT – Um dos filósofos mais debatidos no mundo, hoje, é Slavoj Zizek, a respeito do qual você disse, em seu blog: “não penso como Zizek mesmo!”. Você poderia explicar em que consiste essa divergência exclamativa?
Eu tinha lido um artigo de Nelson Ascher na Folha predizendo isso. Na altura, achei o artigo de Ascher reacionário e algo simplista. Ao ler a conclusão de In Defense of Lost Causes, achei que Ascher tinha razão. Para Zizek, toda crítica à liberdade de expressão nos países comunistas é mera tramóia liberal burguesa. Além disso, ele grila com o café descafeinado. Qual o problema? Café não é cafeína. Nesse caso, ele faz uso indevido das palavras. Bem, além desses dois livros, li artigos esparsos e vi dois documentários americanos sobre ele (lá nos States, passa no cinema e tudo: ele é uma estrela). Num, segue-se uma turnê de palestras. No outro, vê-se Zizek comentando filmes. Assisti à palestra dele na UFRJ. Ele é um cara enérgico, engraçado, sua muito e pronuncia todas as letras das palavras inglesas – com a adição de um cicio. Resulta simpático. Achei irresponsável ele dizer aquelas coisas a um bando de jovens brasileiros. Mas acho que a exclamação no meu comentário se deve a ele ter falado mal do carnaval.
Só preciso te dizer que leio sempre, mas sempre muito sem método ou mesmo critério. Por exemplo, comprei Coração das trevas no aeroporto, em dezembro, indo para Salvador. Ao chegar lá, comentei com Paulo César Sousa a qualidade da tradução de Sérgio Flaksman. Paulo então me disse que acabara de ler um romance estranhíssimo de Conrad, chamado Under western eyes – e me trouxe o exemplar. É um livro incrível, em que Conrad conta uma história que prende o leitor como Crime e Castigo e onde ele mostra que a autocracia russa, marca do Csarismo, estava presente no espírito dos revolucionários russos que se refugiavam na Suíça. E prediz o estilo autocrático que sairá de uma revolução feita por eles. O romance é de 1908, creio. Estava impressionado com isso, quando uma amiga americana me trouxe de Nova Iorque um exemplar de The Nigger of The Narcissus (ela e eu tínhamos uma discussão sobre o problema da palavra “nigger” no país dela) e Tuzé Abreu, me ouvindo falar de três livros de Conrad me trouxe Lord Jim e Linha de sombra. Passei grande parte do verão lendo Conrad, coisa que não planejei, nem sequer imaginei que fosse fazer. Paulo ainda me deu um livro chamado The Great Tradition, um estudo crítico da ficção inglesa, em que Conrad aparece ao lado de George Elliot e Henry James como os seus maiores representantes. Aí li com atenção especial a parte sobre Conrad. É assim, minhas leituras são definidas pelo acaso. Agora estou lendo The Pirate’s Dilemma, um livro otimista sobre internet, pirataria e desrespeito aos direitos autorais. Então, minhas opiniões sobre cultura livresca devem ser tomadas com um grão de sal.
CULT – Ainda em seu blog, num post a respeito da história recente e do papel cultural, político e econômico das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, você declara: “Só mais tarde tomei contato com pessoas que olhavam para o Brasil com um jeito arrogante, como se fossem de uma grande cidade do mundo e tivessem que arrastar essa África às costas. Entendi que alguns queriam salvar o Brasil, outros, livrar-se dele. Passei a chamar isso (irresponsavelmente) de USP”. Você poderia desenvolver essa passagem e nos explicar como compreende o papel da USP na história recente do Brasil?
CULT – Você parece manter uma relação de amor e ódio com a USP, reconhecendo a importância política (incluindo aí FH e Lula) mas tratando o pensamento uspiano como aquele que queria se livrar do Brasil. Existe ainda função política ou “civilizacional” da universidade?
Assim, os neo-conservadores (com todas as grossuras que lhes são características) brilham como um grupo contrastante em ambiente dominado. Não nos enganemos: não estamos falando da USP, mas de uma certa esquerda desenvolvida na USP. Pois há conservadores na USP, inclusive convidados a preencherem as janelas de direita que os jornais descobriram que precisavam abrir. A reação é mais geral: é contra a hegemonia da esquerda. Natural que, sobretudo em São Paulo, algum jornalista se anime a falar em “esquerdopatas da USP”. Eu acho esse tom cafajeste e sem graça porque é superficial. Não apenas esse período FH-Lula não seria possível sem a esquerda uspiana: a universidade tem tido e ainda terá grande papel a desempenhar no nosso amadurecimento político e civilizacional.
A razão de minha birra com o que chamo de USP está descrita pelo próprio Fernando Henrique na conversa com Mário Soares: ele conta que, como sociólogo, ele tinha se oposto a Gilberto Freyre, mas que o exercício da presidência o tinha levado a rever seu julgamento. Como eu gosto de Gilberto Freyre sobretudo por suas conseqüências políticas (as conseqüências históricas do mito luso-tropicalista se tornaram mais palpáveis a FH quando ele teve de enfrentar o Brasil real), considero a crítica que o ex-presidente sustentava antes aquém da intuição mais lúcida do significado da experiência brasileira. E toda teimosia em manter os termos dessa crítica hoje me parece caricatural. FH deu uma desmunhecada quando se abriu vaidosa e descuidadamente para João Moreira Salles na revista Piauí. Lula em geral está além, e não aquém, da intuição luso-tropicalista. É um presidente que soa sempre eufórico e deslumbrado. Mas há algo real no móvel do deslumbamento de Lula. A USP é top de linha na vida acadêmica brasileira. Ainda tem muito a dar. Mas a vida acadêmica brasileira terá de mudar muito – e espero que isso venha como conseqüência de alguma inspirada revolução no ensino básico. Mas entenda que eu próprio não sou luso-tropicalista: a escolha da anedota de FH versus Freyre foi apenas paradigmática.
Mas sem crítica e sem lamentos tampouco se anda. Então está bem. Mas alguém precisa alertar para os conseguimentos, senão não há responsabilidade. O que se ouve em “Falso Leblon” é algo que pode se dar ao luxo de ser dito em tom melancólico: não precisa de euforia. Um solitário entristecido pela visão de uma bela jovem degradada pode meditar sobre o possível enriquecimento e fortalecimento do país onde nasceu e vive. Jorge Mautner diz que “ou o mundo se brasilifica ou vira nazista”. Eu sou diferente de Mautner, mas também o amo muito por dizer isso. Nosso “jeitinho para negociar com a norma” talvez contenha mais elementos do que sonha a sociologia de Arantes. Nenhum país real produz um futuro real que seja o que hoje podemos chamar de “romântico”. Se o futuro que o Brasil esboça é desde já criticável, é sinal de que já estamos longe de poder simplesmente rir do livro de Stefan Zweig. E que o Brasil já é visto como algo que desenha mesmo o futuro do mundo.
Eu não estou tão convencido, apesar de Arantes e seus colegas aglófonos catastróficos. Há europeus continentais (é o caso de um italiano que escreveu “Hedonismo e medo”) que veem o Brasil como modelo para o futuro do mundo – para o bem e para o mal. Mais para o bem, já que o “jeitinho para negociar com a norma” é visto por eles como um modo interessante (e misteriosamente promissor) de metabolizar os males sociais.
CULT – O mandato de Lula termina no ano que vem. Em 2006, em entrevista à CULT, você disse que, embora o achasse mítico e simpático, não votaria na sua reeleição de jeito nenhum. Você acha que o “esse é o cara” do Obama mostra apenas que Lula é um mito que ultrapassou fronteiras ou acha que isso sinaliza de fato uma transformação geopolí-tica maior?
Lula vive a euforia de ver o amadurecimento econômico do país acompanhado de um crescente prestígio das coisas brasileiras aos olhos do mundo. Nisso eu me identifico mais com ele do que com seus críticos. À esquerda ou à direita. Embora eu seja mais cético e, em comparação, um tanto melancólico. Sua chegada ao poder, a de um operário iletrado, é um êxito enorme na Europa desde o começo. Durante a crise do mensalão, vi reações de proteção a Lula na Itália e na França, mais até do que entre petistas brasileiros. Lula é figura internacional. Obama reafirmou isso. Os Estados Unidos precisam de um Lula forte e um Chávez negociador. Ninguém é burro nessa turma. Votei em Lula chorando de emoção. Nunca me arrependi de tê-lo feito. Acho que ele se sente capaz de aproveitar o plano real de FH, o milagre brasileiro de Delfim/Medici, a industrialização de Juscelino (que, aliás, tornou possível seu surgimento) e o populismo getulista. Nunca antes neste país.
Mas nunca desejei que Lula se reelegesse. Nem desejo que ele eleja Dilma e volte em seguida. Aliás, em minha impaciência, votei contra (e torci contra) a reeleição de FH e de Lula. Achei que 16 anos de esquerda uspiana no poder seriam demais. Mas até que o resultado é, para nossos parâmetros, bastante bom. Mesmo porque, mal chegam lá, eles se veem longe da visão que os engendrou como figuras políticas fortes. Muitas vezes se chama de traição a simples evidência de amadurecimento. Odeio políticas antiquadas de favores, corrupção e fisiologismo, odeio mensalão também – mas não desprezo a aproximação entre Lula e Delfim, nem entre FH e Toninho Malvadeza. No primeiro caso, era preciso chegar lá – e nenhum presidente não petista poderia ter um economista da ditadura, apoiador do AI-5, em posição de guru. No segundo, às vezes só se supera um quadro arcaico confundindo-se com ele e, astuciosamente, desconstruindo-o. No final do governo FH, ACM, Jader Barbalho e Sarney pareciam figuras superadas. Voltaram com tudo na era Lula. Mas Lula tem força própria e uma vaidade histórica do tipo que me parece útil agora. Pareço dizer loucuras? Mas se sua pergunta já começa com aquela do Paulo Arantes…
Eu aplico o termo “direita” a conservadores reacionários. Todo o pessoal de esquerda gosta de citar Alain dizendo que se alguém diz que não há tal divisão “direita e esquerda”, esse alguém é de direita. A observação é aguda e engraçada. Mas pode servir justamente a propósitos conservadores. Volto a Antonio Cicero: há uma reação à modernidade que se organiza em áreas do que chamamos direita e em áreas do que chamamos esquerda, hoje. Concordo com ele que desqualificar os direitos individuais, os direitos humanos propriamente ditos, é uma manobra conservadora profunda – que você pode encontrar tanto em Olavo de Carvalho quanto em Slavoj Zizek. Tanto no cardeal que excomunga os médicos que fizeram o aborto da menina estuprada pelo padrasto quanto no dirigente comunista que nega o direito de ir e vir dos cidadãos do seu país. Ou o direito de crítica. Cicero não é bobo de pensar que todos os sofisticados da academia não pensam que ele simplesmente quer limpar o terreno de toda a riqueza conceitual que vem desde Heidegger e Wittgestein, passando pelos frankfurtianos, até os pós-estruturalistas, para voltar – num movimento de contravanguarda filosófica – ao racionalismo vulgar dos iluministas. Cicero sabe que enfrenta essa questão com bravura.
Para ser sincero, com meu espírito místico e meus instintos de vanguarda, não sinto as coisas como ele sente. Além de ser muito ignorante para de fato entrar no debate. Mas não dá para seguir em frente repetindo Adorno ou ecoando Deleuze sem responder as questões que Cícero põe. Ele vem de um marxismo estruturalista (Althusser) e reencontra o melhor do liberalismo inglês e do racionalismo francês porque pensou mais do que os que apenas se ilustraram ou mesmo se refinaram muito. Ou seja: para se ir adiante tem-se que superar a crítica que ele faz. Eu o encontro em meu realismo radical, em minha paixão pela lucidez e pela justiça. Somos amigos e ele também é artista (na verdade, poeta), mas se eu encontrasse O mundo desde o fim por acaso, e não conhecesse o autor, eu ficaria tomado. Eu considero minhas confusões e a limpidez do pensamento de Cicero à esquerda de todas as formas de negação da modernidade. Digam-me que uma razão unívoca não pode dar conta dos nós da superpopulação (sou louco pelo Lévy-Strauss de Tristes Trópicos – e adorei ler hoje que Euclides da Cunha profetizou com grande clarividência os problemas ecológicos que enfrentamos), dos enigmas da mecânica quântica, do mistério complexo das culturas. De acordo. Mas não usem esse espantalho para desenterrar formas já testadas e já rejeitadas. Pode ser que haja um grande retrocesso na civilização. Mas ele não terá em mim um de seus arautos.
Caetano – Sou um apaixonado da canção. Meu amor imenso por João Gilberto vem de perceber que ele é o conhecedor profundo do espírito da canção. A cultura pop, tal como a conhecemos, com a canção e o cinema na frente, é algo que chegou ao ápice no século 20. As transformações tecnológicas, políticas e econômicas por que estamos passando esboçam um novo quadro. Chico Buarque comenta que alguém – creio que um italiano – chamou sua atenção para o declínio da forma canção, comparando-a à ópera no século 19. Além disso, Chico se impressionou, com razão, com o fenômeno do rap, que surgiu como a música de protesto escrita diretamente pelos que estão à margem das áreas dominantes da sociedade, e não por compassivos garotos de classe média. Sou mais pop do que Chico, então vivi esse entusiasmo no início dos anos 80 (por causa do filme Beat Street escrevi “Língua”, música que, na própria letra, se intitulava “samba-rap”, profetizando o que Marcelo D2 faria mais de uma década depois).
Passados tantos anos, cansei da insistência na ostentação de carros, jóias, mulheres como objetos de luxo, desaforos raciais, namoro com chefetes do tráfico: vi essa cultura influenciar os garotos de Santo Amaro (minha cidade natal) e de Guadalupe (bairro de minha infância no Rio) e tendi a perceber fragilidade na política desse gênero de expressão. Mas sempre soube que julgamentos políticos de obras artísticas não funcionam. Então, além de o rap me interessar formalmente (adoro as batidas que enganam a expectativa rítmica do “suíngue”, ou as divisões dos vocais canto-falados que executam drible igual), acho que o interesse conteudístico de suas manifestações está na poesia que nasce dessas contradições, desses desacertos – na tragédia dessa forma de ex-pressão. Mas não acho que o rap represente algo pós-canção. É, talvez, um dos sintomas de que o tempo da canção está passando. Se é que está mesmo passando. Formas artísticas não se prendem ao seu tempo. Ninguém sabe o que futuros amantes encontrarão em canções como “Flor da idade” ou “Blackbird”, “Don’t think twice” ou “Maracatu atômico”. A canção gravada em disco e tocada em rádio é marca do século 20. Isso é que está mudando. Mas A CANÇÃO é velha como a humanidade: cantos japoneses, poemas provençais, Lieder alemães do século 19 – tudo isso veio antes da canção do século 20 – e muito mais virá depois.