1. Milhares de carros avançam pela Avenida Brasil, saindo do Rio. Por cima deles, presa a uma passadeira aérea, a legenda: “Amarécomplexo”. Milhares de carros avançam pela Avenida Brasil, entrando no Rio. Por cima deles, presa a uma passadeira aérea, a legenda: “Amarésimples”.
2. A Avenida Brasil é a grande porta do Rio de Janeiro. Milhares de carros a toda a hora, muitas horas parados. De um lado e do outro, quilómetros de velhas fábricas, armazéns, baldios, favelas. A favela da Maré. O complexo de favelas da Maré.
Há não muito tempo a Baía da Guanabara vinha até aqui. Muita da terra firme do Rio é aterro. A Maré chama-se Maré porque a favela ainda apareceu à beira da água, com gente de muitas partes. Segundo o último censo, hoje são 130 mil. Uma maré plana e parda, atravessada por vias rápidas de onde não se vêem caras. Quem vem de carro olha em frente. Mas nas últimas semanas, ao olhar em frente, vê a legenda: “Amarécomplexo”, “Amarésimples”.
3. — Isso é a obra do Marcos Chaves — diz o meu anfitrião, apontando a passadeira aérea.
O carro dá a volta para sair da avenida e entrar na favela. Logo no primeiro quarteirão funciona o Centro de Artes da Maré, um armazém onde há três anos a coreógrafa Lia Rodrigues trabalha em parceria com a organização Redes e o Observatório de Favelas.
Mesmo ao lado, há uma antiga fábrica que o Observatório de Favelas decidiu comprar para um novo projecto artístico, o Bela Maré. E para a estreia, convidou três curadores a organizar uma exposição de arte contemporânea, Daniela Labra, Luísa Duarte e o meu anfitrião nesta tarde de chuva, Frederico Coelho.
4. Entre dar aulas de literatura na faculdade (de Pêro Vaz de Caminha a Luiz Ruffato), organizar livros (o último, entrevistas de Tom Jobim), fazer argumentos de cinema (“Construção”, estreado na recente Mostra de São Paulo), escrever ensaios sobre cultura marginal dos anos 60 e 70 (Hélio Oiticica e por aí fora), ser DJ da Festa Phunk (“black music” e por aí fora) e jovem pai de duas gémeas, o Fred faz tantas coisas que esta não é a primeira nem será a última vez que abrevio o nome dele numa crónica.
Veio do subúrbio para a Zona Sul, o que lhe deu um mundo que falta à Zona Sul. Está em casa em toda a parte, e isso tem tudo a ver com arte contemporânea na Maré. Fazer do fora o dentro, do dentro o fora, de qualquer lugar o centro.
5. A chapinhar na chuva de Verão, chegamos à velha fábrica. “Travessias: Arte na Maré”, diz a fachada. À entrada, vários monitores de t-shirt amarela, uns de fora, outros da favela. Desde a inauguração houve ateliers, debates, visitas de escolas, e as perguntas de quem nunca entrou num espaço assim.
— A primeira pergunta que eles fazem é: “Paga para entrar?” — conta Fred. — E isso diz tudo: “Isso aqui não pode ser de graça para a gente.”
Avançamos para o centro do armazém, pé direito de três andares.
— Quando a gente chegou, estava atulhado de máquinas, de lixo. E não há no Rio de Janeiro um espaço desse tamanho a funcionar com arte contemporânea.
A um canto, uma projecção dos Filé de Peixe, um trio que recolhe fragmentos de videoarte, monta uma banca ambulante e vende os CD’s a dois ou três reais. Arte a dar a volta à pirataria.
Ao centro, uma escultura de André Komatsu com tijolos e tábuas, evocando os materiais e a instabilidade da favela. Ao ver isto, uma moradora viu as velhas barracas da Maré assentes em palafitas, quando por baixo havia água.
Ao fundo está a memória não só da fábrica como da infância dos cariocas. Porque a fábrica que aqui existiu entre 1960 e 2000, a Italy, fazia os copos e pratos de papel estampado que todos os cariocas reconhecem de festas, confeitarias e restaurantes. A artista Rochelle Costi ainda achou todo um espólio, então fez uma parede com fotografias e uma sala com mobiles de copos e pratos.
E mesmo Fred, que tantas vezes já viu isto, ao levantar os olhos para o mobile por cima da nossa cabeça vê pela primeira vez as estampas de São Cosme Damião.
— No subúrbio é uma tradição. No dia 27 de Setembro, as famílias compram doces e distribuem entre as crianças. Um Halloween do Brasil. Na minha infância isso era obrigatório porque era o aniversário da minha avó. Ela tinha sempre uma mesa cheia de doces e convidava as crianças da rua.
Uma rua em Olaria, do outro lado da Avenida Brasil.
6. E há uma sala só com cor e som, onde as crianças da favela fazem de si próprias a projecção.
E do primeiro andar pende o jardim de cores que são centenas de garrafas de refrigerante cheias de detergente colorido, porque há um morador da favela que as recicla, enche e vende, então a dupla de artistas Eli Sudbrack/Christophe Hamaide-Pierson encomendou-lhe centenas, que vão rodando, à medida que os visitantes trazem uma vazia e levam uma cheia.
E no pátio interno Henrique Oliveira ergueu uma escultura tão extraordinária que num primeiro momento podemos ver nela um altar com uma Pietá, antes de vermos a espuma, o zinco, o gesso, a areia, restos que ele colheu pela favela e com os quais foi moldando a parede, como se a matéria viesse do próprio edifício, uma cabeça aberta, uma barriga aberta, vísceras. Ele chama-lhe um abcesso. A chuva já o modificou, e não para. David Cronenberg ia adorar.
7. Quem percorrer listas de exposições na imprensa do Rio não achará esta.
— Porque a gente não está falando de violência, de pobreza, não tem baile funk, não tem capoeira — comenta Fred, apontando a escultura no pátio. — Mas esse cara não pensou se o pessoal da Maré ia entender. Ele fez o melhor que podia.
Tal como Raul Mourão, que no armazém ao lado montou três gigantescas esculturas cinéticas, aquilo a que ele chama “balanços”, uma estrutura de ferro encaixada noutra, de forma a que uma delas balance.
Fred vai de uma para a outra, empurrando a parte que balança. Todo o armazém parece ficar em movimento.
— Obviamente que no dia da inauguração dezenas de crianças se penduraram aqui.
Mourão tem feito muitos “balanços”, mas até agora nenhum com tamanho de avião num hangar. Aqui teve espaço, e quem viu viu.
8. Ao todo, a exposição reúne 17 artistas ou colectivos. Em alguns casos, obras que foram performances, outras que estão fora daqui, na rua. O que está na rua sujeita-se a todas as apropriações. Foi o que aconteceu com a peça de Matheus Rocha Pitta, um velho ônibus, estacionado aqui em frente. Ele encheu-o com tijolos, areia, objectos inanimados.
— De noite a galera vem aqui e faz tudo — diz Fred, subindo a bordo.
Por exemplo fumar “crack”. No banco do fundo há roupa amarrotada, mochilas velhas, pratas, papéis de coca.
Estamos na Maré, não deixámos de estar. A cem metros daqui há uma “boca de fumo” a vender droga, e mais adiante tráfico armado. A Maré é a próxima na programação da polícia carioca. O próprio BOPE, que é a tropa de elite, vai instalar-se cá.
9. Para voltar à cidade, atravessamos a passadeira aérea por cima da Avenida Brasil. A legenda continua ali para todos, acima do trânsito entre fora e dentro: “Amarécomplexo”, “Amarésimples”. Nada é nunca uma coisa só.