(A)mar(é)complexo
A exposição Travessias – arte contemporânea na Maré (q acabou ontem) saiu no BLOGUE da Alexandra Lucas Coelho lá no Público.
1. Milhares de carros avançam pela Avenida Brasil, saindo do Rio. Por cima deles, presa a uma passadeira aérea, a legenda: “Amarécomplexo”. Milhares de carros avançam pela Avenida Brasil, entrando no Rio. Por cima deles, presa a uma passadeira aérea, a legenda: “Amarésimples”.
2. A Avenida Brasil é a grande porta do Rio de Janeiro. Milhares de carros a toda a hora, muitas horas parados. De um lado e do outro, quilómetros de velhas fábricas, armazéns, baldios, favelas. A favela da Maré. O complexo de favelas da Maré.
Há não muito tempo a Baía da Guanabara vinha até aqui. Muita da terra firme do Rio é aterro. A Maré chama-se Maré porque a favela ainda apareceu à beira da água, com gente de muitas partes. Segundo o último censo, hoje são 130 mil. Uma maré plana e parda, atravessada por vias rápidas de onde não se vêem caras. Quem vem de carro olha em frente. Mas nas últimas semanas, ao olhar em frente, vê a legenda: “Amarécomplexo”, “Amarésimples”.
3. — Isso é a obra do Marcos Chaves — diz o meu anfitrião, apontando a passadeira aérea.
O carro dá a volta para sair da avenida e entrar na favela. Logo no primeiro quarteirão funciona o Centro de Artes da Maré, um armazém onde há três anos a coreógrafa Lia Rodrigues trabalha em parceria com a organização Redes e o Observatório de Favelas.
Mesmo ao lado, há uma antiga fábrica que o Observatório de Favelas decidiu comprar para um novo projecto artístico, o Bela Maré. E para a estreia, convidou três curadores a organizar uma exposição de arte contemporânea, Daniela Labra, Luísa Duarte e o meu anfitrião nesta tarde de chuva, Frederico Coelho.
4. Entre dar aulas de literatura na faculdade (de Pêro Vaz de Caminha a Luiz Ruffato), organizar livros (o último, entrevistas de Tom Jobim), fazer argumentos de cinema (“Construção”, estreado na recente Mostra de São Paulo), escrever ensaios sobre cultura marginal dos anos 60 e 70 (Hélio Oiticica e por aí fora), ser DJ da Festa Phunk (“black music” e por aí fora) e jovem pai de duas gémeas, o Fred faz tantas coisas que esta não é a primeira nem será a última vez que abrevio o nome dele numa crónica.
Veio do subúrbio para a Zona Sul, o que lhe deu um mundo que falta à Zona Sul. Está em casa em toda a parte, e isso tem tudo a ver com arte contemporânea na Maré. Fazer do fora o dentro, do dentro o fora, de qualquer lugar o centro.
5. A chapinhar na chuva de Verão, chegamos à velha fábrica. “Travessias: Arte na Maré”, diz a fachada. À entrada, vários monitores de t-shirt amarela, uns de fora, outros da favela. Desde a inauguração houve ateliers, debates, visitas de escolas, e as perguntas de quem nunca entrou num espaço assim.
— A primeira pergunta que eles fazem é: “Paga para entrar?” — conta Fred. — E isso diz tudo: “Isso aqui não pode ser de graça para a gente.”
Avançamos para o centro do armazém, pé direito de três andares.
— Quando a gente chegou, estava atulhado de máquinas, de lixo. E não há no Rio de Janeiro um espaço desse tamanho a funcionar com arte contemporânea.
A um canto, uma projecção dos Filé de Peixe, um trio que recolhe fragmentos de videoarte, monta uma banca ambulante e vende os CD’s a dois ou três reais. Arte a dar a volta à pirataria.
Ao centro, uma escultura de André Komatsu com tijolos e tábuas, evocando os materiais e a instabilidade da favela. Ao ver isto, uma moradora viu as velhas barracas da Maré assentes em palafitas, quando por baixo havia água.
Ao fundo está a memória não só da fábrica como da infância dos cariocas. Porque a fábrica que aqui existiu entre 1960 e 2000, a Italy, fazia os copos e pratos de papel estampado que todos os cariocas reconhecem de festas, confeitarias e restaurantes. A artista Rochelle Costi ainda achou todo um espólio, então fez uma parede com fotografias e uma sala com mobiles de copos e pratos.
E mesmo Fred, que tantas vezes já viu isto, ao levantar os olhos para o mobile por cima da nossa cabeça vê pela primeira vez as estampas de São Cosme Damião.
— No subúrbio é uma tradição. No dia 27 de Setembro, as famílias compram doces e distribuem entre as crianças. Um Halloween do Brasil. Na minha infância isso era obrigatório porque era o aniversário da minha avó. Ela tinha sempre uma mesa cheia de doces e convidava as crianças da rua.
Uma rua em Olaria, do outro lado da Avenida Brasil.
6. E há uma sala só com cor e som, onde as crianças da favela fazem de si próprias a projecção.
E do primeiro andar pende o jardim de cores que são centenas de garrafas de refrigerante cheias de detergente colorido, porque há um morador da favela que as recicla, enche e vende, então a dupla de artistas Eli Sudbrack/Christophe Hamaide-Pierson encomendou-lhe centenas, que vão rodando, à medida que os visitantes trazem uma vazia e levam uma cheia.
E no pátio interno Henrique Oliveira ergueu uma escultura tão extraordinária que num primeiro momento podemos ver nela um altar com uma Pietá, antes de vermos a espuma, o zinco, o gesso, a areia, restos que ele colheu pela favela e com os quais foi moldando a parede, como se a matéria viesse do próprio edifício, uma cabeça aberta, uma barriga aberta, vísceras. Ele chama-lhe um abcesso. A chuva já o modificou, e não para. David Cronenberg ia adorar.
7. Quem percorrer listas de exposições na imprensa do Rio não achará esta.
— Porque a gente não está falando de violência, de pobreza, não tem baile funk, não tem capoeira — comenta Fred, apontando a escultura no pátio. — Mas esse cara não pensou se o pessoal da Maré ia entender. Ele fez o melhor que podia.
Tal como Raul Mourão, que no armazém ao lado montou três gigantescas esculturas cinéticas, aquilo a que ele chama “balanços”, uma estrutura de ferro encaixada noutra, de forma a que uma delas balance.
Fred vai de uma para a outra, empurrando a parte que balança. Todo o armazém parece ficar em movimento.
— Obviamente que no dia da inauguração dezenas de crianças se penduraram aqui.
Mourão tem feito muitos “balanços”, mas até agora nenhum com tamanho de avião num hangar. Aqui teve espaço, e quem viu viu.
8. Ao todo, a exposição reúne 17 artistas ou colectivos. Em alguns casos, obras que foram performances, outras que estão fora daqui, na rua. O que está na rua sujeita-se a todas as apropriações. Foi o que aconteceu com a peça de Matheus Rocha Pitta, um velho ônibus, estacionado aqui em frente. Ele encheu-o com tijolos, areia, objectos inanimados.
— De noite a galera vem aqui e faz tudo — diz Fred, subindo a bordo.
Por exemplo fumar “crack”. No banco do fundo há roupa amarrotada, mochilas velhas, pratas, papéis de coca.
Estamos na Maré, não deixámos de estar. A cem metros daqui há uma “boca de fumo” a vender droga, e mais adiante tráfico armado. A Maré é a próxima na programação da polícia carioca. O próprio BOPE, que é a tropa de elite, vai instalar-se cá.
9. Para voltar à cidade, atravessamos a passadeira aérea por cima da Avenida Brasil. A legenda continua ali para todos, acima do trânsito entre fora e dentro: “Amarécomplexo”, “Amarésimples”. Nada é nunca uma coisa só.