Entrevista no site da Fundação Iberê Camargo

Luísa Fedrizzi, editora do site da fundação Iberê Camargo, me pegou correndo depois de uma palestra lá na Subterrânea e fez essa entrevista que entrou no ar sábado passado.

 
Os balanços do acaso

O carioca Raul Mourão dedica-se à produção de esculturas, desenhos, pinturas, vídeos, objetos, fotografias, performances e instalações. Suas obras, construídas com materiais tão diversos quanto madeira, lona, ferro e pelúcia – já que ele é o autor da afamada série luladepelúcia, de 2006. Os trabalhos apresentam um vocabulário composto de elementos da visualidade urbana deslocados de seu contexto usual.

Um exemplo é sua série Grades, de 2005, que, de uma certa forma, deu origem a seus mais recentes trabalhos: os balanços. Apresentadas recentemente no Atelier Subterrânea, em Porto Alegre, na exposição Balanço Geral, as obras se movimentam se acionadas pelo público, e foram batizadas de acordo com o tempo de duração de seu ciclo.

Na conversa abaixo, Mourão fala mais sobre a série, sua relação com o espectador e seu novo projeto, em vídeo.

Objetos com movimento eram algo inédito até então na sua trajetória. E você diz que, antes de Balanço Geral, seus trabalhos tinham uma “biografia” anterior a sua realização, mas que, neste caso, isto já não existe. O trabalho é o que se apresenta…
É, exatamente.

Porém, por trás destas obras existe um convite de uma companhia de dança, certo? Como esta parceria colaborou para a realização deste trabalho?
No final do segundo semestre de 2009, surgiu um convite da Intrépida Trupe pra participar de um espetáculo onde a companhia interagiria com obras de quatro artistas: Marta Jourdan, Pedro Bernardes, Guga Ferraz e eu. Para isto, eles queriam usar a série das grades, que, a princípio eu tive resistência, porque são esculturas que nunca imaginei serem manipuladas, interagirem com o corpo. Eram trabalhos para contemplação visual, apesar de, em alguns momentos, as pessoas poderem entrar neles, como no caso da instalação Buraco do Vieira, no Museu Vale , em Vila Velha, na exposição coletiva Outra Coisa. Eu tinha esta resistência, mas eles foram ao ateliê, começaram a improvisar, e assim começaram a surgir várias coisas muito interessantes, até surpreendentes para mim. E aí fui convencido ali, naquele momento. Depois, eles levaram várias peças para a sala de ensaios, eu comecei a frequentar os ensaios, e fui acatando o que eles foram construindo. Desses improvisos surgiu o movimento das peças, propriamente. Uma peça apoiada sobre outra, acionada por um dos integrantes, ficava em movimento e ele entrava e saia deste movimento. Eu guardei esta imagem. Naquele primeiro momento, não achei que aquilo podia voltar para o ateliê e detonar trabalhos novos, mas, uma semana depois, fiz uma pequena maquete, simulando uma situação parecida com aquela que eles tinham criado, e ela gerou uma série de experimentações, que vieram dar nesta nova série que estou chamando de Balanços. Então, o trabalho tem origem na série das Grades, mas já é uma série nova, que não remete mais a todos aqueles conceitos que estavam por trás daqueles trabalhos: um comentário crítico à crise da segurança pública, à degradação visual e arquitetônica das cidades, e à crise social e mental, esse espaço de paranóia, de reclusão dentro das casas, de negação do espaço público como um espaço de todos. Todos estes conceitos e pensamentos não estão mais presentes em Balanços. Então, esta é uma série que, como você estava falando, é quase desprovida de conceitos, é quase uma pura composição de formas geométricas. É uma busca da beleza, da composição ideal, que gera um movimento que me parece mais bonito, mais elegante, mais belo.

Esta é uma pesquisa que convida o espectador a acionar a obra, a participar, experimentar a obra, colocá-la em funcionamento, como se fosse ligar um aparelho. Uma televisão precisa de alguém que a ligue para que ela comece a funcionar. Aqui também tem isso: o espectador é convidado a botar a obra em ação, dar vida a ela. E a ideia de aumentar a escala é algo que vem surgindo naturalmente na pesquisa. Fiz um tamanho, fiz outro, e o trabalho encaminha para uma outra escala, que ainda não pude experimentar. Mas já fiz alguns estudos e maquetes, e meu desejo é seguir nesta direção.

Foi um processo complicado se despir desta biografia, deste entorno que fazia parte das suas obras?
Não, não foi. Quando surgiu a experimentação destas novas peças, fui tomado, fui envolvido, e minha pesquisa virou esta. Mas ainda estou bem no início de uma série, foi exposta pela oportunidade de mostrar no calor da origem, já no primeiro momento, e de poder também sentir o retorno que a obra tem sem a solenidade de uma grande mostra. Foi uma decisão que achei que combinava com o espírito da Subterrânea e que eu estava querendo vivenciar. Muitas vezes o artista fica fechado fazendo coisas no ateliê e precisa deste contato. Precisa jogar as obras no mundo e ver como elas funcionam.

E por ser participativa, por incluir o espectador, esta série facilita que você perceba a reação do público mais do que em trabalhos anteriores?
Acho que este trabalho coloca o espectador em outro lugar de contemplação, um lugar privilegiado, diferenciado. É um lugar que gera uma contemplação mais intensa, na minha opinião.

Por quê?
O movimento tem um tempo, e quando você está observando o trabalho por um tempo maior, e o trabalho está se modificando no percurso deste tempo, entendo que ele desloca, “sequestra” o espectador para um lugar onde acontece esta contemplação diferenciada. É uma junção da qualidade do espectador e de uma peça que se mexe, e que gera isto.

Na conversa com o público, realizada na Subterrânea Atelier durante a sua exposição, você apresentou, em primeira mão, um novo trabalho em vídeo. Você poderia falar um pouco sobre este projeto?
É um trabalho inédito, que pretendo apresentar em breve. É um vídeo de 3’49’’ de duração, captado em full HD e sem som, com direção de fotografia do David Pacheco, que fiz em 2009. Ele é um plano que tem início, meio e fim, ou seja, tem uma história, mas que tem o acaso como elemento de sua criação. Assim como, assistindo, você não sabia o que vinha no andar de baixo, eu também não sabia. Não preparei aquele plano, ele é acidental, feito depois que tínhamos passado uma noite no terraço de um prédio produzindo 7200 fotos para outro trabalho. Ao sair de lá, exaustos, no amanhecer, vimos a luz entrando e pensamos: “bom, vamos fazer isso aqui”. O filme é sobre isto. O David fala que a gente vivenciou o Samsara [perambulação, caminho, ciclo da vida para as religiões indianas], ao virar a noite lá, penando no frio e dormindo na laje, para, então, atingir o Nirvana na realização deste plano, que é de uma beleza fotográfica e de uma série de acontecimentos do inesperado. Parece que começamos no amanhecer e que terminamos no entardecer, que vamos do verão ao inverno. Mas aquelo é exatamente o tempo real. O que se vê realmente aconteceu comigo, e eu estou dividindo com o público. Não tem manipulação nem de tempo nem de reenquadramento, nem de tratamento de imagem…

E a geometria que aparece ali, que tem muito a ver com o seu trabalho, também é fruto do acaso?
Tudo é o acaso.

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