As cores do Carvão

Peguei esse texto abaixo no novissimo blog da Daniela Name chamado Pitadinhas.

29 08 2009

Buracos entre azulejos: desleixo e ocupação da área com o anunciado Museu da Bossa Nova

Buracos entre azulejos: desleixo e ocupação da área com o anunciado Museu da Bossa Nova

Quase todo mundo que trabalha com arte no Rio tem uma história com Aluísio Carvão (1920-2001). Ouvi e li algumas delas desde que repassei no Facebook o link com o abaixo-assinado que pede a restauração de um mural de azulejos do artista na Avenida Mário Ribeiro, no Leblon (Estrada Lagoa-Barra), que corre sérios riscos de desaparecer com a construção do Museu da Bossa Nova, prédio em forma de piano (!!!) já anunciado pelo governo estadual. Desde a gestão anterior, o painel, criado pelo artista em 1996, vem sofrendo com o desleixo da Fundação Parques e Jardins, que não repõe as peças faltosas.

Os buracos entre os azulejos prejudicam a compreensão do desenho geométrico sobre a paisagem da cidade e roubam da obra de Carvão o que ela tem de mais fundamental – a cor. Nascido em Belém do Pará, ele foi aluno de Ivan Serpa no curso de pintura do Museu de Arte Moderna do Rio, do qual mais tarde se tornaria professor. Entre 1953 e 1956, fez parte do Grupo Frente, que mudaria o rumo da arte contemporânea brasileira. Integrou a 1ª Exposição Nacional de Arte Concreta (1956) e, em 1959, assinou o Manifesto Neoconcreto com Lygia Pape, Lygia Clark, Amilcar de Castro, Franz Weissmann e os poetas Reynaldo Jardim e Ferreira Gullar.

Depois da diluição do movimento construtivo, Carvão não trilhou o mesmo caminho de artistas como as Lygias Pape e Clark e Hélio Oiticica, que testaram os limites entre arte e vida. Também não ficou notório pela experiência com vários suportes, caso dos concretos paulistas Geraldo de Barros e Waldemar Cordeiro, embora tenha sido cenógrafo, capista de livro e ilustrador, aplicando os princípios da geometria construtiva em seu trabalho como designer.

"Cornucópia", de 1955: forma imperfeita

“Cornucópia”, de 1955: forma imperfeita

Sem a exuberância de alguns de seus contemporâneos, Carvão exibia sua singularidade por linhas tortas. Literalmente: embora fosse conhecedor da Gestalt e todas as teorias de cor da Bauhaus que nortearam outros construtivos brasileiros, ele não se prendia aos jogos ópticos com cores básicas e formas geométricas perfeitas. Com ele, a incompletude sensível proposta pelos neoconcretos atingiu contornos distintos. Com uma paleta próxima à de Volpi – e, voltando um pouco mais no tempo, à de Guignard – Carvão ousou brincar com tons pastéis e semitons no reino de pós-Mondrian. Gostava do improviso, do incompleto e da gambiarra, como provam suas “Farfalhantes”, telas em que pequenos quadrados de metal presos lado a lado criam som e movimento com a a passagem do vento.

"Farfalhantes", de 1967: luz, som e movimento

“Farfalhantes”, de 1967: luz, som e movimento ao sabor do vento

A disposição das “Farfalhantes” me traz de volta ao painel de azulejos do Leblon. E às minhas próprias histórias com Carvão. Entrevistei-o algumas vezes e ele foi assumindo um lugar cada vez mais estratégico em meus afetos e admirações. Não só pelo artista grandioso que era, mas pelo fato de não fazer questão de sobrar. Carvão se tornava mais importante à medida que não fazia questão de sê-lo. Em um de nossos encontros, em Niterói, logo depois da preparação de sua última grande individual em vida, no MAC, tivemos uma companhia diferente de sua cachacinha de estimação: já muito velho e cansado, Carvão devorou com apetite infantil taças enormes de sorvete enquanto falava das pipas e dos barcos de Belém, das cores lavadas pela luz do Norte.

Lembro que ali enxerguei o menino que ele foi, caçador de passarinhos da floresta, em frente àquele Maracanã gelado e doce. Tenho a impressão que é deste menino que todo mundo sente falta.

Daniela Name / agosto 2009

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