Consumo Autoral – o livro
Texto do objeto sim objeto não.
O parágrafo acima, em outros tempos, certamente estaria publicado em um livro ou ensaio de sociologia do consumo ou de psicologia social – talvez até mesmo de antropologia urbana. Mas hoje, 2009, o parágrafo acima é parte do intrigante livro Consumo Autoral – as gerações como empresas criativas (publicado pela Estação das Letras e Cores, 2009 – aqui, um pdf em italiano). O livro não é escrito por um autor, mas sim elaborado por um coletivo de designers, intelectuais, especialistas em tecnologia, estilistas etc, capitaneado por uma “cabeça central”. O coletivo é o – agora eu sei – famoso Future Concept Lab, de Milão, Itália. A figura central do FCL é o sociólogo, escritor, jornalista e presidente da instituição, Francesco Morace. A organização dos textos e as idéias presentes no livro também são dele.
Na introdução, uma pequena descrição do que é o FCL:
“Vinte anos atrás, quando pesquisa de tendência ainda não era uma grande tendência, Morace fundou o Future Concept Lab, hoje um dos mais importantes centros de pesquisa e estudos de comportamento e valores de consumo do mundo. Interpretando mudanças comportamentais e valores de consumo como fenômeno sociológico e mercadológico, Morace, durante esses anos, atendeu uma série de empresas internacionais como Illy Café, L’Oreal, Veuve Clicquot, Philips, Nokia, além das brasileiras Havaianas e O Boticário, ajudando-as a desenhar estratégias de sucesso para o futuro. Não, Morace não é um futurólogo, mas um incansável pesquisador e interpretador de sinais contemporâneos que de algum modo influenciam o imaginário coletivo mundial”.
Com este preâmbulo sobre o livro e o comandante do FCL, acho que vale a pena aprofundar alguns pontos breves que vieram na mente ao ler sobre comportamento, consumo, mercado e otras cosas em livros como este do FCL. O lance inicial é entender o que eles chamam de Consumo Autoral, isto é, a capacidade do consumidor, nos dias de hoje, em ser mais do que um mero receptáculo passivo de ofertas do mercado e das propagandas. A idéia ultrapassada de que o consumo é opaco e de que as empresas e os publicitários “empurram“ o que querem vender do jeito que for é o ponto combatido pelo FCL e por outros pensadores já há algum tempo. Sem assumir ou saber, eles vão ao encontro, por exemplo, de um conceito já bem conhecido do historiador francês Michel de Certeau – o conceito ativo de APROPRIAÇÃO do bem consumido, sejam eles imagens, objetos, textos ou abstrações. O consumo autoral reinventa os sentidos propostos, exige qualidade, rejeita erros morais, éticos ou políticos, desregula tendências, estilhaça certezas das empresas etc.
Morace e sua equipe apostam que nosso atual momento é o de um “Renascimento 2.0”, ligado diretamente às inovações tecnológicas e às possibilidades crescentes de construção de si em redes que o mercado mundial lhe oferece em seu cotidiano. Com toda a retórica sedutora do consumo enquanto felicidade, do capitalismo enquanto espaço de criatividade e potencialização da estética de si, o livro nos conduz em um Admirável Mundo Novo em que as populações mundiais não se dividem mais em grupos políticos ou econômicos, mas sim em grupos de Megatrends, ou seja, de Mega tendências de comportamento e consumo. Seja em Seul, no Rio, em Berlim ou em Estocolmo, somos potencialmente todos iguais frente nossa capacidade de criar e reinventar o mundo que nos cerca. Cito o livro:
“O objetivo destas páginas é o de colocar o mercado no centro de uma nova visão estratégica que concilia a qualidade dos produtos, do management e da vida cotidiana, segundo uma prática interdisciplinar, inovadora e humanística, afastando o fantasma da visão econômico-cêntrica proposta pelo capitalismo e das finanças tipicamente anglo-saxônicas que está se redimensionando no mundo inteiro, abandonando a velha lógica de uma globalização surda a qualquer diferença, que esmaga o genius loci do s povos e países, na era da globalização”.
Como crítica automática a todo esse pensamento, vem a idéia clara de que o FCL pensa isso a partir da Europa. De Milão, mais precisamente. Quem consome design e tecnologia está, claro, altamente inserido no mercado e na possibilidade de vivê-lo e inventá-lo. tem dinheiro, acesso e estabilidade para consumir o que for oferecido. A visão contrária do FCL à “surda globalização” não luta contra as desigualdades econômicas, mas sim contra as desigualdades de acesso aos produtos. É claro, voltamos aqui à questão eterna: não é porque há mais de um bilhão de miseráveis no mundo que todos precisam viver voltados para isso. Cada um com seu cada qual. Mas o intrigante desse livro do FCL é o deslocamento do pensamento sociológico sobre o comportamento humano de forma tão radical para a esfera do mercado, do consumo e da produção de marcas e modelos de venda.
O livro Consumo Autoral, aliás, deve ser lido pelos que se interessam pelos temas de consumo nos dias de hoje – desde artistas e intelectuais até produtores de conteúdo, designers, cool hunters, head hunters, trend hunters e alhures. Para fazer jus à quantidade de informações que fazem pensar, seria necessária uma resenha imensa, um estudo sério sobre os diversos conceitos e idéias que são apresentadas. Mas como não vou escrever a resenha, sigo aqui mais um pouco.
O caso das Megatrends, por exemplo, são inquietantes. Dividindo o mundo em tendências estruturais – como faziam os sociólogos com os grupos políticos ou econômicos – o FCL nos apresenta seis formas de consumo que, de certa forma, não há como negar que a leitura deles é perfeita sobre o que tem rolado de tendências de consumo hoje em dia. Quando lemos estas megatrends, ou nos identificamos com alguma delas, ou identificamos alguém que conhecemos. As seis megatrends e suas cidades modelos são:
– Consumo compartilhado (Seul)
– Consumo arquetípico (Lomé)
– Consumo transitivo (Moscou)
– Consumo como memória vital (NY)
– Consumo de ocasião (São Francisco)
– Consumo decontractive (Sidney)
Para cada um, uma lista de padrões de comportamento. Para o primeiro, a experiência compartilhada, os fanáticos por File Sharing, festivais urbanos como cultura emocional, produtos para usos compartilhados e identidades participativas etc. Para o segundo, experiências locais excelentes, relação entre indústria e artesanato, centralidade dos processos produtivos (de onde vem o que como? Qual a procedência desse tecido etc), turismo fundado sobre qualidade do lugar etc. Para a terceira, produtos com forte carga afetiva, jogo como propulsor do consumo, o mundo infantil como fonte de inspiração, experiências intergeracionais etc. Já o quarto, de NY, é baseado em regeneração dos estilos do passado (brexós e vintage), recombinações entrecruzadas de culturas étnicas, valorização permanente dos objetos de culto, capacidade de contar através da memória etc. E por aí vai…
Esta divisão por tendências da população mundial demanda uma pesquisa frenética com mais de 50 pesquisadores do FCL espalhados pelo mundo todo, pelas grandes e pequenas cidades, anotando, fotografando, rabiscando, dissecando, esquadrinhando o consumo e o comportamento. Morace cita Duchamp, Benjamin, Alvin Tofler, Lipovestky e após definir as mega tendências, investe por fim no tema central de seu trabalho: a idéia de Geração como empresa criativa. Cada núcleo geracional tem um perfil sociologicamente definido e descrito, com seus países eleitos e todas as possibilidades de se pensar consumo, mercado, sedução de objetos, invenção de demandas etc. Sempre lembrando que quem pauta o produto é o próprio consumidor, e não vice-versa. O produto é um objeto que ganha sua forma final a partir do entendimento do que querem dele – quase uma proposta artística em aberto, onde o objeto se molda ao desejo do espectador. Um sabonete não é mais “apenas um sabonete”, mas ele vende a você o frescor da natureza, a pureza das castanhas do Pará com amêndoa, a exclusividade de pagar por uma marca tradicional (caso você compre sabonetes da Granado, por exemplo) e por aí vai…
Vale apenas citar o único núcleo geracional que o Brasil é citado como país eleito, estudo de caso: é o núcleo das Singular Women (35-50 anos). A descrição:
“A singularidade feminina é expressa por mulheres sempre mais audaciosas, seguras de si, sem conceitos preestabelecidos. A tendência coincide com o enfraquecimento da identidade masculina, do ponto de vista estético, apesar das invenções do metrosexual ou do ubersexual [sic] que temos visto somente em revistas ou nas propagandas com Bechkam e depois com os campeões de rúgbi”.
Bem, escrevi este post mais como estupefação pelo livro de Morace e do FCL do que propriamente por ter algo a falar sobre isso… Aconselho aqueles que se interessam pelos temas do consumo, da nova economia, da reinvenção das profissões e do trabalho a lerem o livro. Ainda cabem algumas idéias, como por exemplo o extremado eurocentrismo, o verniz sociológico para no fundo ensinar como vender, a reinvenção do discurso intelectual em um mundo mercantilizado, mas escrevo em outra oportunidade porque o texto já ficou grande e, dependendo da megatendência que você leitor pertença, o consumo de textos não é a principal característica do “seu perfil geracional”.